O Play BPM apresenta mais uma coluna para vocês, a Coluna da Lisa! Aqui você encontrará diversos textos e analises sobre a nossa cena eletrônica, sempre com um toque mais intelectual, fazendo comparações e colocando em pauta discussões interessantes e construtivas. Para os preguiço de leitura, a autora dos textos, Lisa Uhlendorff, também postará o conteúdo em formato de vídeo, em seu IGTV.
O primeiro tema é sobre um futuro musicalmente fluido: um futuro com vertentes sem caracterizações, e como isso afetará artistas, gravadoras e eventos. Confira a analise da Lisa. Curta, comente e sugira novos temas. Espero que curtam!
Já dizia Bauman, em seu brilhante livro Modernidade Líquida:
“Tudo é temporário, a modernidade (…) – tal como os líquidos – caracteriza-se pela incapacidade de manter a forma”.
Por modernidade sólida, Bauman se refere à uma sociedade anterior a nossa, onde os valores se transformavam em ritmo lento e previsível e, assim, tinha-se algumas certezas sobre o futuro próximo e uma certa sensação de controle sobre o mundo – sobre a natureza, a tecnologia, a economia, por exemplo.
A Revolução Industrial acelerou o carro-motor da sociedade de 10km/h para, talvez, 30km/h. Mas tudo mudou com o boom da tecnologia, que aconteceu no final do século XX. Agora, a 250km/h, o surgimento de novas tecnologias, a globalização e a instabilidade econômica mundial trazem uma sensação de perda de controle e impossível previsibilidade do futuro. Vivemos, hoje, uma modernidade líquida, onde formas sociais como o trabalho, a família, o amor, o engajamento político e a própria identidade se comportam de maneira fluida.
Mas como Bauman pode nos ajudar a entender o futuro do mercado da música eletrônica?
Eu explico. Nesse contexto de instabilidade, é muito provável que o “ciclo” da música eletrônica – no qual em um ano uma vertente está em alta e, no próximo ano, outra ocupa seu lugar – comece a girar mais rapidamente. Provável, também, que devido ao surgimento de novas tecnologias na produção musical, ganhe vida novos estilos de som que entrem nesse ciclo.
Porém, particularmente, não acredito que um dia todas as vertentes irão se difundir de uma forma que será criada uma só vertente. Pelo contrário, pois isso seria o fim da música. O que torna a música tão interessante e imortal é o seu mix de pluralidade, cultura, comunicação e identificação. Se existisse só um estilo, todo seu significado intrínseco iria água a baixo.
Atualmente, a curva de inovações em diversos setores (por exemplo, o da biotecnologia e inteligência artificial) cresce de forma exponencial. Em um mundo cada vez mais tecnológico (frase clichê mas uma verdade incontestável), o mercado da música eletrônica será levado junto à essa curva, mais parecida como uma onda – a não ser que queira ficar “pra trás”. E essa onda, é um tsunami: rápido, forte e avassalador, que quebra colunas da sociedade antes ditas como “inquebráveis”.
Faço apostas altas que, devido ao tsunami, cada vez mais essa distinção entre vertentes será fluida, rápida, e misturada. Cada vez mais, artistas terão que se adequar, adotar novos gêneros e tornarem-se abertos ao “diferente”.
Esse fenômeno já é observado atualmente em outros segmentos da indústria musical. Músicas comerciais, vencedoras de Grammys e top 10 no Billboard, são um mix de pop, com rap e com eletrônica em uma só track. Em muitos casos, porém, esse mix de vertentes é feito tratando-as como “pacotinhos” singulares, que não se conversam entre si e não trazem harmonia para música. São aqueles casos em que a música começa no rap, o drop é eletrônico e, do nada, entra um vocal feminino estilo pop de “plano de fundo”. Mas, quando é bem feito, a integração entre estilos fica super interessante.
Focando agora na música eletrônica, já vemos um aumento grande de gravadoras independentes no meio. Infelizmente, uma grande parte delas tem ciclo de vida curto; nascem e morrem muito rapidamente, por N fatores. O que seria muito interessante para essas gravadoras, seria abrir seu leque de opções para vertentes diferentes que “combinam entre si”. Começar, desde o início, a se aprofundar nesse mix cultural musical que existe mais abaixo da ponta do iceberg. É importante lembrar que a ponta do iceberg vai derreter cada vez mais rápido, então porque não desvendar o que tem embaixo dela?
Colocando a lupa sobre os artistas, é importante que managers e até o próprio público cobre uma profundidade musical maior do artista.
A concorrência entre DJs e produtores é muito alta. Balance uma árvore e cairá mais DJs do que folhas – o que não é ruim, pelo contrário, a cena fica mais interessante, novos talentos podem ser descobertos e torna a profissão mais democrática. Mas musicalmente falando, uma forma muito interessante de bater a concorrência é mergulhar no mundo da música e trazer para seu público um mix musical avançado. Algo pra frente, diferente, que tem harmonia entre si. É importante que DJs e produtores estudem o universo da música para além da vertente que ele/ela trabalha hoje em dia. Em um piscar de olhos, o mundo vai estar de cabeça pra baixo e o artista com a maior bagagem cultural vai se adaptar mais facilmente e saber surfar o tsunami. Interesse no universo musical (independente de gênero ou vertente) é essencial para qualquer pessoa que trabalha com música. Lembre-se: música é pluralidade.
Festas e festivais também serão afetados no futuro próximo. Com artistas mais empoderados musicalmente e com a venda de tracks menos superficiais (devido às gravadoras independentes), o público dos eventos estará mais preparado para uma fusão musical nas cabines. Hoje em dia, os festivais são separados em palcos, e na grande maioria das vezes, cada palco tem um estilo de som diferente. Mas, talvez, no futuro essa distinção seja somente temática. Os line-ups sejam fluidos, agregando artistas de house, minimal, drum n’ bass, techno em uma mesma pista. Cada line, uma imersão diferente, um universo diferente, sem a necessidade de colocar cada um no seu potinho. E, aí, artistas com maior bagagem cultural saberão pegar a pista de um artista de techno e entregar a pista para um artista de electrohouse. Imagina, que máximo!
Quando o assunto é o “fim das caracterizações”, essa discussão é muito maior. Abordamos o fim das hierarquias nas empresas, dos trabalhos fixos e estáticos, do fim da concepção de gênero (hoje mesmo, não existe só masculino e o feminino, mas sim mil outras formas de se reconhecer), e, levando para uma discussão mais adiante, a gente fala de cyborgs e transumanismo. Então porquê, no universo da música, não seria assim também?
Se você quiser conferir, aqui o vídeo no IGTV explicando o assunto:
Sobre o autor
Lisa Uhlendorff
Do marketing à produção de eventos e agências de booking. Sou dessas que gosta de fazer um pouco de tudo - com sede de conhecimento, amante dos livros e apaixonada por pessoas e lugares. Morei em Amsterdã e em Barcelona me aventurando no mundo da música eletrônica underground. Hoje, trabalho na M-S Live e na ARCA, em São Paulo.