Confesso que fiquei um pouco receosa antes de botar essa coluna no ar. É complicado falar abertamente sobre um tema delicado e abordando uma visão contrária à vigente. Ressalto que a redijo com respeito.
Erick Morillo, DJ lendário do house music, faleceu nesta terça-feira (01/09). Resumidamente, o decorrer da história se deu da seguinte maneira: ele foi acusado de estupro em Dezembro de 2019. Na ocasião, a vítima ligou pro 911 e alegou ter sido estuprada na residência de Morillo, após acordar nua ao seu lado (e consciente de que aquilo não foi, em nenhum momento, consentido). Ele negou as acusações. Fez-se um teste de DNA e deu positivo para relação sexual entre ambos. Logo depois, Morillo se entregou à polícia e esperava a audiência do caso – que seria nesta sexta-feira (04/09).
O universo da música é mágico. Pessoas felizes dançam nas pistas, núcleos de amizades se formam, momentos inesquecíveis acontecem, emoções nunca antes sentidas são vivenciadas. Mas, não só com bondade que se faz uma boa história. Existem pessoas que vão contra toda a positividade que deriva da música, da festa e da união; agindo de maneira individualista – se não, até, criminosa.
A cultura do estupro sempre esteve presente no meio musical, até porque essa indústria é um reflexo da sociedade. Quem faz a cena – seja artista, público ou a galera do backstage – também vive em sociedade e cresce na presença de valores distorcidos, naturalizando acontecimentos que, em momento nenhum, deveriam ser ditos como normais. Estupro, agressão física ou verbal e assédio. Por vezes, com a mesma seriedade que os próprios atos, os ‘passadores de pano’ sabem do acontecimento e de nada fazem. Decidem olhar para o lado e fingir que não veem, que não sabem, que não estão envolvidos. Que não se importam.
A cultura do estupro está presente na dúvida de alguns colegas sobre a veracidade do fato. Alguns dizem ‘ah, mas ela que decidiu ir para a casa dele’ ou ‘ah, mas ela pode estar mentindo’. É entendível que exista esse tipo de questionamento, artistas são colocados em pedestais como se fossem sub-humanos. Damos muito tanto foco à ele e pouco para a vítima. Uma situação foda. Admito que não consigo evitar o questionamento de se esse foi um caso isolado em 49 anos. Não é raro uma mulher levantar a voz pela primeira vez e outras aparecerem – aliás, tem nome para isso: força coletiva.
O caso de Morillo tem suas semelhanças com muitos outros casos de homens com poder e fama (tipo o João de Deus, Harvey Weinstein e Jeffrey Epstein ). Nesse em específico, trata-se de uma figura lendária para a música eletrônica. Ele influenciou o cenário, abriu portas para outros artistas, introduziu o house music para uma imensidão de gente e fez muitas noites felizes. Para alguns, foi um gênio. Será que esse crime corrompe e naufraga toda a carreira do DJ e suas contribuições para a cena?
Você pode gostar da música do Erick Morillo, ter dançado ao som das cabines de Erick Morillo, se inspirado por Erick Morillo e até mesmo ser fã do Erick Morillo. Não é culpa sua que ele foi bom no que fez, muito menos dele. Mas é sim culpa dele o estupro, e desconsiderar esse fato faz você ‘passar pano’. Explico:
Artistas são pessoas, não santos imaculados que nada fazem de errado. O ‘ser artista’ é um produto, uma imagem, um trabalho. No fundo, todavia, são gente como a gente. A figura dele como artista é diferente da figura dele como pessoa. Evitar julgar um artista como pessoa comum é o pior erro que a indústria pode fazer, e é exatamente por isso que a cultura do estupro prevalece nesse meio. A distinção entre ambos personagens permite colocar artistas em posição de igual para igual diante a moral e a ética.
Infelizmente, o assédio, a agressão e o estupro estão muito mais perto do que a gente imagina. A passada de mão na bunda no meio da pista é só a ponta do iceberg.
Erick Morillo terá suas ações julgadas por Deus, Universo ou pelo que você acreditar. Desejo que ache Luz e descanse em paz, pois só assim nossas almas evoluem. Suas contribuições para a cena eletrônica continuam entre nós – é um trabalho incrível que merece respeito. Aos que ficam, como eu e você, é hora de colocar a mão na massa, e não pano no chão.
Fontes:The Sun, The Guardian, The Guardian II, Local10.
Sobre o autor
Lisa Uhlendorff
Do marketing à produção de eventos e agências de booking. Sou dessas que gosta de fazer um pouco de tudo - com sede de conhecimento, amante dos livros e apaixonada por pessoas e lugares. Morei em Amsterdã e em Barcelona me aventurando no mundo da música eletrônica underground. Hoje, trabalho na M-S Live e na ARCA, em São Paulo.