O tema da coluna de hoje é inspirado no livro ‘Comece pelo Porquê’ do Simon Sinek. O autor apresenta uma teoria chamada Golden Circle – em português, Círculo Dourado. O livro segue uma linha teórica e conceitual, apresentando vários cases de empresas, organizações e startups bem sucedidas (e outras nem tanto) e explicando o porquê de cada uma ter o destino que teve na visão do Golden Circle. Durante minha leitura, percebi que a teoria do Círculo Dourado se encaixava perfeitamente com o meio da música eletrônica, especialmente no management artístico.
Associo o Círculo Dourado com bonecas russas; aquelas que você desencaixa a maior e aparece uma menor, depois desencaixa a menor e aparece uma outra, menor ainda… e por aí vai, até chegar na menor bonequinha possível que é impossível de ser desencaixada. No caso do Círculo Dourado, existem 3 camadas: a primeira, externa, é o “O QUE”; a segunda, no meio, é o “COMO; e por fim a terceira, interior, é o “PORQUÊ”.
Antes de entrar nas especificidades do Círculo Dourado, é preciso entender o porquê dele ser tão importante quando pensamos em comercializar um produto, um evento ou um artista. E a resposta é que vivemos em uma sociedade que não começa pelo PORQUÊ de vender o que vende ou de fazer o que faz. Muitas empresas utilizam de maneira exagerada e ineficaz algumas “receitinhas” de marketing para vender produtos baseadas em manipulação de preço, promoções, medo, pressão de grupo social ou “novidade”.
Exemplificando: é o caso do produto que só vende quando entra em promoção ‘compre 2, leve 3’ ou que só sai da prateleira se estiver com o preço mais barato do mercado. O caso do produto que implica na propaganda que o consumidor que tiver esse produto é cool e descolado, e por isso será aceito em algum grupo social. Ou o caso da empresa que só continua existindo porque a cada mês lança um produto “novidade” – que de novidade não tem nada – só algo a mais que inseriram no produto e que não faz nenhuma diferença expressiva’. Também é o caso dos avisos de morte ou cancêr que existem atrás das embalagens de cigarro e, convenhamos, não evita a compra do produto.
Com os artistas, acontece a mesma coisa.Quando trabalhei em agência de booking, fiz muito benchmark entre artistas do mesmo segmento. Percebi com o tempo que muitos artistas – muitos mesmo – utilizam um marketing completamente escravo de manipulação, preço, promoção ou “novidade”. Em outras palavras, são artistas que abaixam o preço do cachê de forma absurda para que sejam contratados (ficando, assim, nas mãos dos contratantes); que soltam músicas que fizeram nas coxas por causa da pressão de ter que lançar, lançar e lançar; que o feed é lotado de promoções “marque 2 amigos e concorra a…” buscando engajar o público, entre muitos outros exemplos. A “fórmula do marketing artístico” acaba por ficar calcificada na coluna vertebral do artista e este, como consequência, fica preso à essa fórmula e com dificuldades em criar conteúdos inovadores ‘fora da caixinha’.
O perigo das manipulações é que elas funcionam – até certo ponto. Por isso tanta gente usa. Mas manipulações têm um custo alto: a auto-sabotagem. O artista crê que é maior do que realmente é. Tem uma visão de sua carreira baseada em quantidade de likes e comentários supérfluos. Além de não fidelizar público nenhum, ao longo prazo a ‘fórmula do marketing’ deixa de funcionar.
Então como posso vender meu nome sem usar essas manipulações? É aí que entra o Círculo Dourado.
A melhor maneira para introduzir essa teoria é citando um parágrafo do livro em que o autor se refere à estratégia da Apple:
“Uma mensagem da Apple, se eles fossem iguais a todos os outros, poderia soar assim:Fazemos ótimos computadores.São lindamente projetados, simples de usar e intuitivos para o usuário.Quer comprar um?
Na visão artística, o ‘PORQUÊ’ do seu projeto é a sua identidade, o seu propósito como artista. O ‘COMO’ são os diferentes meios que você utiliza para comunicar essa identidade. O ‘O QUE’ é o conteúdo físico/visual/auditivo que você produz, a entrega final. Suas músicas, suas artes, sua linguagem precisam estar alinhadas ao seu PORQUÊ para que todo o projeto faça sentido.
Caso você não esteja muito convencido sobre a teoria do Círculo Dourado, a neurociência explica. De forma resumida: o cérebro humano se divide em algumas partes. Entre elas, existe a parte que controla as emoções, chamada Sistema Límbico – na parte interna do cérebro. Uma outra parte controla a razão, os pensamentos racionais, chamada Sistema Neocórtex – na parte externa do cérebro. O PORQUÊ é ditado pelo sistema límbico, pela emoção e sentimentos. Já o O QUE e o COMO são ditados pelo neocórtex, pela razão, pelos números, pelos fatos.
Quando comunicamos o PORQUÊ de fazer o que a gente faz ou de vender o que a gente vende, trabalhamos com as emoções e sentimentos do público. Isso gera conexão e fidelidade da parte deles.
Um belíssimo exemplo para ilustrar tudo o que foi dito é o Vintage Culture. A base de fãs do artista é imensa. Se você perguntar para os fãs o porquê deles gostarem tanto do Vintage, eles provavelmente responderiam: “ele é um cara foda” ou “ele é um artista incrível” ou, somente, “eu AMO ele”. A justificativa dos fãs do Vintage não são racionais, relacionadas a quantos seguidores ele tem nas redes, ou quantos shows ele faz no ano, ou quanto ele ganha de cachê. A justificativa é em relação à emoção que esse artista traz para as pistas e comunica em suas redes sociais. Por isso que nos ‘On The Road’ não colocam um gráfico mostrando o crescimento dos números no Spotify, e sim imagens da galera chorando, gritando, levantando bandeira, cantando…
Isso mostra pra gente que um artista que se vende a partir de justificativas racionais relacionadas ao COMO ou O QUE, não fideliza público. Que ninguém vira fã por número ou dado, deixe para o computador e para a equipe de marketing lidar com isso. Na hora de contar quem é você, o que você faz e como você faz, foque nos sentimentos e na emoção. Fidelize pelo o que é real, pelo que vem de dentro.
É claro que existe uma diferença no PORQUÊ das empresas e no PORQUÊ dos artistas. Um artista é uma pessoa, e nesse caso, talvez a palavra PORQUÊ seja melhor entendida por PROPÓSITO. Se o seu propósito como artista é ser rico, ganhar um prêmio, ter seguidores nas redes sociais, dar autógrafos, ter gente gritando seu nome… isso não é um propósito, é uma meta profissional. Tudo aquilo é só uma consequência de muito trabalho duro que surge a partir de um propósito profundo, não materializado em forma de capital ou fama.
O PORQUÊ de você fazer o que faz é traduzido nas suas músicas, na sua comunicação e na sua personalidade. Tenha um impacto positivo no mundo, a partir da sua produção, da sua arte, da sua voz e da sua influência. Fidelize seu público a partir do que você entrega ao mundo, e não do que você retira dele.
Empresas falam muito em ter um produto diferenciado no mercado. De fato, a diferenciação por si só é importante, mas ela não é o único fator que irá tirar os produtos das prateleiras. Produtos são reflexos de uma marca, e essa marca tem um PORQUÊ de fazer o que faz. Lembrem-se: a Apple não faz computadores. O computador é somente um reflexo do que ela propõe: desafiar o status quo por meio da inovação tecnológica.
O mesmo se aplica aos artistas. O produto final ‘música’ é um reflexo do artista em si. Um show, um set, uma collab, uma parceria, um patrocínio, uma transmissão ao vivo, por mais diferenciado que o conteúdo ou entrega seja, se não estiver alinhado à coluna vertebral do artista, não fará sentido para o público. É possível, ainda, que surjam mais críticas negativas do que positivas derivadas dessa “diferenciação” sem sentido. Não deixe seu público confuso!
Por fim, eu lhe pergunto: PORQUÊ você faz o que faz? COMO você irá comunicar para o mundo o seu propósito? O QUE você vai fazer para comunicar isso? Nessa linha, de dentro pra fora. Essa é a coluna vertebral de qualquer projeto.
Por isso, meus caros e caras, eu sempre reforço: autoconhecimento é – sempre – a ferramenta mais importante de um artista.
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Sobre o autor
Lisa Uhlendorff
Do marketing à produção de eventos e agências de booking. Sou dessas que gosta de fazer um pouco de tudo - com sede de conhecimento, amante dos livros e apaixonada por pessoas e lugares. Morei em Amsterdã e em Barcelona me aventurando no mundo da música eletrônica underground. Hoje, trabalho na M-S Live e na ARCA, em São Paulo.