Com o lançamento do remix de “Cor de Rosa Choque”, Mary Olivetti se firma como produtora musical e mostra o talento herdado do pai, Lincoln Olivetti
Por Claudia Assef.
“A parede do estúdio do meu pai dava com o meu quarto. Ouvia o som vindo de lá o tempo todo. Roberto Carlos e Tim Maia almoçavam em casa. Rita Lee se trancava comigo no quarto para brincar de fada e tinham de convencê-la a sair de lá para continuar as gravações”,lembra Mary Olivetti.
Assim era o dia a dia de Mary, filha do produtor Lincoln Olivetti (1954-2015), responsável pela trilha sonora de toda uma geração criada nos anos 70 e 80 no Brasil, um produtor que tinha a capacidade de unir música de rádio, de TV e de pista de dança em um mesmo hit.
A imersão na usina de grooves que operava do lado de seu quarto durante os anos 80 forjou uma mulher “feminina, mas que dá choque”, com um talento nato para a música de pista. Ao longo dos últimos 20 anos, Mary cruzou o Brasil de Norte a Sul, atuando como uma das mais disputadas DJs de música eletrônica do país, com sets altamente influenciados pelas batidas da house music e dos batuques africanos.
Virginiana, nascida em 7 de setembro de 1983, no dia da Independência do Brasil, um ano após a Seleção Canarinho ter feito uma das mais brilhantes Copas do Mundo de sua história (apesar de não ter chegado às semifinais), Mary Linn Olivetti sempre se viu emaranhada com música, apesar de nunca ter sido oficialmente incentivada a isso.
Além da trajetória de sucesso como DJ, ela trabalha desde 2002 como curadora de rádios para diversas marcas, entre elas FARM, Animale, Adriana Barra, Mercedes Benz, Salinas, Ben&Jerry’s, BirkenStock Brazil, Schutz, Cantão, Adriana Degreas, Galeria Melissa Global, entre muitas outras, e VOGUE, veículo no qual Mary atuou durante 6 anos como crítica musical de desfiles de moda do eixo Rio-SP.
Ou seja, cantora, DJ, curadora, crítica musical… Durante esse tempo de estrada, Mary acumulou muita bagagem musical, em seu porta-malas, que já veio recheado de fábrica.
Ao virar mãe (de Francesco, 14, Luca, 6 e Gaia, 3), a tríade aeroporto/festa/cabine de DJ perdeu lugar para a vontade de estar mais atenta ao ninho. Assim, ela atendeu ao chamado do destino e se matriculou num curso de produção musical, na faculdade Anhembi Morumbi.
E é como produtora musical que Mary Olivetti, agora aos 37 anos, realmente escancara o talento e as ferramentas da dinastia a que pertence. Mary exibe em seu DNA musicalidade de altíssimo padrão de qualidade. Afinal, ela é fruto do relacionamento de Lincoln Olivetti, que, na série documental O Mago do Pop, lançada em 2019 (Amazon Prime), foi definido como “o homem que mudou a história da música pop no Brasil”, com a cantora e compositora Claudia Olivetti, que escreveu músicas para Xuxa, Sandra de Sá, Jane Duboc, Angélica, entre outros, cantou em inúmeros hits radiofônicos e chegou a gravar disco próprio.
Aos 6 anos, Mary fez sua primeira incursão em estúdio, gravando vocais para músicas escritas pelo pai e a mãe. Afilhada de Tim Maia, vivendo numa casa onde se respirava música, era certo que seu destino começaria a ser desenhado desde muito cedo.
Brazilian boogie e Rita Lee
Nos últimos anos, seja através das mãos de DJs e produtores brasileiros (como Fatnotronic, Jonas Rocha aka Joutro Mundo, Selvagem, Tahira, Nu Azeite) ou gringos (como Poolside, James Rod, Jazzanova, a lista é enorme!), o chamado Brazilian Boogie, gênero que de certa forma foi uma das invenções de Lincoln Olivetti, vem ganhando cada vez mais adeptos pelo mundo todo, uma legião de fãs que no momento se contenta com playlists e novos lançamentos, já que estamos todos impedidos de curtir o groove e a potência rebolativa do boogie brasileiro nas pistas de dança.
Resgatando a pegada dançante e pop de mestres como Tim Maia, Sandra de Sá e, claro, Lincoln Olivetti, Mary vem mergulhando em projetos de altíssimo escalão para consolidar sua persona como produtora musical. Seu primeiro grande trabalho como remixer é a repaginação de Cor de Rosa Choque, faixa de 1982 de Rita Lee e Roberto de Carvalho. Ela será lançada nesta sexta (9) no álbum Rita Lee & Roberto – Classix Remix Vol. 1, juntamente com outras 11 faixas deste que é primeiro de uma série de três álbuns em que DJs e produtores de música eletrônica revisitam a obra completa de Rita e Roberto.
Mulheres na música
Mary foi convidada por João Lee para o portentoso pack de remixes da obra de seus pais, ao lado de um time estrelas como o brasileiros Gui Boratto, Renato Cohen, Marky, Whebba e Chemical Surf e gringos como Harry Romero. Ela é a única produtora musical mulher do disco, reflexo do mercado brasileiro (e, por que não, mundial). Segundo pesquisa da UBC (União Brasileira dos Compositores), de 2020, as mulheres produtoras fonográficas somam 7% do total no Brasil. Indo um pouco além na pesquisa descobrimos que, entre os 100 artistas que mais arrecadaram com direitos autorais ano passado, apenas 10 são mulheres.
Essa distância entre gêneros não faz Mary esmorecer. Ao contrário. O esmero com a produção do remix de Rita & Roberto, trazendo um time para criar novos elementos no lugar da desconstrução das partes, mostra o quanto o background de Mary Olivetti a diferencia: Mary gravou novas linhas de guitarra, bateria e baixo, com músicos de peso convidados, e dobrou a quantidade de vocais das gravações originais.
“Quis refazer toda a bateria. Para o baixo, chamei o Alberto Continentino, que tocou com nomes como Gilberto Gil e Adriana Calcanhoto, e pedi algo meio na linha da (gravadora soul) Motown. Para os teclados, pedi riffs de Wurlitzer e Rhodes para o Rodrigo Tavares, além de alguns synths. Já as guitarras foram refeitas pelo Paulinho Guitarra, que me mandou diversas ideias e conseguiu mudar completamente a vibe da música. Nunca mais faço nada sem guitarra”,revela a produtora.
Músicos, sons e uma produtora no padrão Rita Lee e Roberto de Carvalho de qualidade. “Quando mandei a música para o João, num domingo de manhã, foi uma comoção. À tarde, uma mensagem da Rita me fez acreditar que havia feito a minha parte, independente do que acontecesse depois”.
“Mary, aqui é Rita Lee. Acabei de ouvir sua obra prima! Cor de Rosa Choque. Que coisa maravilhosa, que tesão, ficou uma delícia, parabéns! Bem, filha de peixe, peixinha é. E sua mão deu um toque sexy, de tesão, uma delícia!”– Rita Lee, dando seu feedback sobre o remix de Cor de Rosa Choque.
O golaço marcado com o remix de Cor de Rosa Choque não foi o início de Mary Olivetti como produtora e está longe de ser o ponto mais alto da montanha. Trata-se do trampolim para um projeto bem ambicioso: uma regravação do zero de um dos grandes sucessos de seu pai, a música Black Coco, composta em 1978 para a banda Painel de Controle. A herdeira do acervo do mestre do groove manteve o (já podemos chamar de) hábito de convidar músicos para criar novidades para a versão original. Já dá pra dizer que Mary tem um – alto – padrão de criar remixes com personalidade e musicalidade únicos. O single de Black Coco será lançado em julho de 2021 pelo selo germano-brasileiro Cocada Music, braço tropical da gravadora Get Physical, um dos orgulhos da música eletrônica de Berlim.
Mary também emprestará sua voz ao novo álbum de Fábio Santana, músico e produtor musical com quem Mary já fez parceria em forma de um senhor remix. Trata-se da faixa Xangô, do álbum Vibração (2020), que ao passar pelas mãos de Mary se tornou um hino de afrohouse espiritual e chegou a top 1 da gravadora Me Gusta Records, que lançou a faixa.
Seja por sua ligação direta com a fonte do pop dançante feito no Brasil ou por sua característica meticulosa e detalhista de trabalhar, ainda ouviremos muitos grooves colhidos da nave musical comandada por Mary Olivetti.