"A música fascina", conta Mary Olivetti em entrevista sobre seus 20 anos de carreira
São 20 anos de carreira, são 20 anos de muito aprendizado, são 20 anos de conquistas. O que na sua opinião foi o momento mais marcante nesses 20 anos?
20 anos são uma vida, literalmente. Neste período passei por momentos marcantes, mas especial mesmo foi voltar a tocar depois de ver minha família constituída e sentir meus filhos felizes em me ver feliz. A maternidade sempre foi um assunto muito sério pra mim. Ser mãe e ser uma boa mãe são extremos e eu sempre almejei ser uma excelente mãe. No entanto, antes da maternidade me parecia impossível ser DJ e super-mãe ao mesmo tempo, porém todas nós descobrimos que além de não sermos perfeitas possuímos uma força extra para priorizarmos tudo que desejamos. Este retorno aos palcos é um recomeço que mais me parece um começo, me sinto livre realizando somente o que me dá prazer.
Você imprime muito das suas raízes cariocas em suas produções. Como de fato isso influencia você e seu projeto?
Nasci e cresci no Rio de Janeiro. Na infância absorvia a ginga do famigerado Brazilian Boogie direto da fábrica (risos). Quando completei 10 anos o Funk explodiu nas rádios fluminenses e também no meu microsystem Aywa. Com 11 comprei meu primeiro CD nas Lojas Americanas, “Another Level” do Blackstreet, um compilado de hits dos passinhos em bailes de charme em Madureira. Aos 12 frequentava matinês pra ouvir Miami Bass e aos 14 caí com tudo no banho de espuma dos bailes Funk da baixada à Zona Sul. O suíngue carioca sempre tomou conta de mim. Corta pra hoje que produzo música e tenho uma fila de desejos antigos que envolvem referências de uma vida inteira. Fico feliz de saber que esta essência é notável em minhas criações, mas juro, nunca foi proposital. Talvez eu exprima de modo natural algumas das memórias colecionadas por todos estes anos.
Seu pai sempre foi grande inspiração para sua carreira. De que forma você acredita que isso te auxiliou?
Sabe, curiosidade aqui. Meu pai não esteve presente nas minhas tomadas de decisão antes e enquanto DJ. Me tornei DJ porque adorava fazer seleções musicais afiadíssimas para momentos bons com amigos, e nesta fase eu não tive papai junto a mim. Meu caminho sempre foi avesso ao dele. As pessoas da noite as quais eu me relacionava mal o conheciam e o meu repertório, a House Music, era muito distante do que ele produzia. Hoje, 20 anos depois, acho isso saudável. Eu percebo que o que construí durante muitos anos foi fruto do meu próprio suor, e também do meu potencial. Neste meu recente retorno decidi expor minha paixão pela música brasileira, coisa que jamais havia feito, e foi aí que os caminhos se cruzaram. É uma pena que ele não esteja aqui pra ver e ouvir o que tenho feito, mas juntos produzimos “You & Me” em 2011 e isso foi inesquecível.
Com sua assinatura cheia de nuances da música orgânica com inclinação para as atmosferas do House e Deep House, você representa uma parte importante da história da música eletrônica no Brasil. Como você vê isso?
Fico animada em ver a atual ascensão da House no Brasil. É como observar a onda chegando ali sentada na prancha, a gente surfa e sabe que a série já vai terminar, mas a gente sabe que depois vem outra, e outra. É na House que meu coração mora. Eu até gosto de passear por alguns de seus vizinhos como a Disco, o Boogie, o Deep, e se me permitem dizer, até o Techno, mas é na House Music que meu coração mora. Eu gosto do sorriso, da mensagem que a canção trás pra vida das pessoas que estão na pista, da harmonia sob e melodia, dos elementos tocados à vera. No estúdio sinto a mesma coisa, receber um baixo elétrico recém gravado é quase que sinestésico. Abrir uma multitrack e solar os naipes, editar as cordas, ouvir as camadas de vocais isoladas, isso é único. Teclados, pianos, sintetizadores analógicos, uma infinidade de timbres. Amo aprender sobre, conhecer a história da nossa música, saber quem são os músicos, conversar com eles. A música fascina.
Seus últimos lançamentos, de 2020 para cá, tiveram ótimas repercussões. Você acredita que esse tempo de reclusão devido à pandemia te ajudou?
Sim. Foi na pandemia que de fato comecei a produzir. Um ano antes de entrarmos em reclusão eu já cursava presencialmente a faculdade de Produção Musical na Anhembi Morumbi. Já com um bom percentual cursado nós nos trancamos em casa. Foi aí que tirei um tempo maior para experimentar, investi no meu estúdio, troquei muito com amigos e coloquei tudo em prática. Alguns lançamentos neste período alavancaram a minha volta ao mercado a medida que tudo foi voltando ao normal.
Você tem uma relação incrível com a Cocada Music. Como essa relação surgiu e se desenvolveu durante os anos?
Eu sempre fui fã da Cocada. Na minha “licença-maternidade” mesmo que on-line sempre acompanhei os eventos e lançamentos. Eu e Leo Janeiro já éramos bons amigos de profissão. Quando eu estava começando a produzir minha regravação com Mahmundi para “Black Coco” pensei: “esse coco pode dar uma ótima cocada!”. Liguei pro Leo e fizemos acontecer. Desde então somos muito parceiros e damos suporte um ao outro. Hoje sou ainda mais fã da Cocada Music e feliz em fazer parte.
A visibilidade das produtoras mulheres vem alcançando cada vez mais espaço, apesar de sabermos que ainda não está no patamar ideal. Como você enxerga essa questão?
Existe um movimento natural que vai do 0 ao 100. Ele é lento mas está acontecendo. Mulheres observam mulheres produzindo e consequentemente pensam que também têm o direito de fazer aquilo, não se trata mais de um tabu. Há 20 anos atrás quando comecei a tocar haviam poucas DJs, hoje existem centenas. Hoje, quando começo a produzir, vejo poucas produtoras também, o que me faz pensar que em 20 anos felizmente existirão centenas. Ser DJ ou produtora musical ainda é uma atividade muito fora da curva para mulheres e a sociedade, a medida que o tempo passa, está mais consciente de que nós podemos ser o que nós escolhermos ser. Este é um paradigma que ainda estamos quebrando. Seria tão bom termos mais incentivo à cultura nas escolas, nas faculdades, aulas de musicalização na infância, teoria e prática musical na adolescência. A música desenvolve o sentimento mais profundo que podemos ter, é cerebral, é genial. Este caminho é fundamental para que mais e mais mulheres (e homens) se interessem pelo universo da Música, que ao meu ver é um dos mais nobres caminhos que um ser humano pode seguir.
O que podemos esperar para os próximos 20 anos de carreira?
É aquela máxima… "o futuro a Deus pertence”, mas se ele me permitir dar um pitaco, sugiro tocar, produzir e empreender. Tocar é a parte mais legal do rolê (risos), é quando eu lavo a minha alma. Produzir é incrível, aprendo diariamente, sou inquieta, busco respostas, alternativas, me dou desafios grandes e não tenho medo de errar (temos coisas boas ainda para 2022). Mas empreender é meu futuro, de fato. Além da minha empresa de gestão de direitos autorais onde vamos lançar este ano alguns projetos importantes que envolvem o acervo do meu pai, recentemente criei a Raio Laser, uma label de festas/reuniões House e programa de rádio hospedado pela Veneno. Esta semana a Raio Laser se tornou também plataforma e-commerce e em breve receberá marcas de merchandising Dance/ House/Eletrônica com coleções cápsula, além de termos lançado nossa própria coleção de t-shirts. Sejam bem-vindos! www.raiolaser.online
Imagem de capa: Renan Olivetti