HeyDoc! e autismo - uma relação de resiliência e inspiração que ultrapassa barreiras
O autismo - ou Transtorno do Espectro Autista - é uma condição ainda muito banalizada dentro da sociedade. Ainda hoje existem grandes barreiras e preconceitos enraizados para essas pessoas justamente pela desinformação. Dentro da cena eletrônica também há muito o que se falar sobre o autismo, principalmente pela presença de artistas como Elias Gabriel, mais conhecido como HeyDoc!.
Diagnosticado desde jovem com autismo, o goianiense vem se superando e conquistando seu espaço dentro da indústria musical há mais de 4 anos. Com lançamentos em labels de renome nacional e internacional, como Confession, DirtyBird, Box of Cats, HUB e Alphabeat, HeyDoc! já rodou o mundo com seu Bass House, visitando de Ibiza a Amsterdã, do ADE ao Universo Paralello.
Convidamos o DJ e produtor para bater um papo exclusivo sobre sua história, carreira e relação com o transtorno, na semana após celebração do Dia Mundial da Conscientização do Autismo, que acontece no dia 2 de abril. Confira:
Antes de mais nada, gostaríamos de saber um pouquinho mais sobre a sua história. Quem é HeyDoc!?
Eu sou um DJ/Produtor de Goiânia, especializado em Tech House e Bass House, mas com produções em diversos gêneros musicais. Comecei como um estudante de medicina que tinha uma grande paixão pela música e gratidão pelo efeito que ela teve em mim ao longo dos anos. Durante meu curso, comecei a produzir por hobby, e com o tempo fui percebendo que o poder curativo da música era muito forte, e que essa sim seria minha vocação. Foi assim que decidi dedicar meu tempo 100% para a música eletrônica. Desde então, já consegui suporte de grandes referências minhas, como Tchami, Dr. Fresch, Tim Baresko, Bruno Furlan e vários outros. Além de também ter alcançado várias gravadoras com minhas tracks, como Confession, Dirtybird, HUB records, Box of Cats. De 2019 para cá, me apresentei em palcos como Playground Music festival, Park Art, Universo Paralello, El Fortin, Tantra (Ibiza), Copa Experience e Abstract, além de já ter muitos mais marcados.
Sabemos que você possui TEA - Transtorno do Espectro Autista. No entanto, isso está longe de ser algo que te define, tanto como pessoa, quanto como artista. De que forma a música e o TEA se encontram?
O TEA, pra mim, age como um catalisador em minha relação com a música. Eu sei que absorvo e interajo com a música de uma forma bem específica, o que me ajuda tanto na hora de produção quanto na hora de aprender um instrumento ou até de me apresentar e frequentar locais com muitas pessoas. Essa minha relação com a música facilita bastante meu trabalho em todos seus aspectos.
A carreira artística apresenta inúmeros desafios para qualquer um que deseja segui-la. No seu caso, quais foram os maiores desafios que você já enfrentou, e como você os superou? E quais as maiores conquistas?
Alguns dos maiores desafios para mim sempre foram as questões mais sociais da carreira, como frequentar clubes lotados, conhecer e me apresentar para muitas pessoas, viajar do nada e às vezes ficar longe de casa por semanas, e em meio a isso tudo ainda manter minha compostura e criatividade em seus ápices. Mas como de costume, a música me ajudou muito a lidar com algumas dessas coisas. Musicoterapia é um tema muito pouco tratado por aqui ainda, mas como eu já estudei sobre, consigo usar seus efeitos positivos para aliviar minha tensão e ansiedade em locais lotados quando há música que eu gosto tocando neles. Na minha cabeça, eu fico em um local seguro quando eu posso me concentrar na música, e é isso que me permite conseguir me apresentar na frente de tantas pessoas. Já em questões de networking eu posso dizer que sou muito grato à minha família e meus amigos por me ajudarem a alcançar e conhecer pessoas que com certeza eu levaria o dobro de tempo para me conectar. Minha rede de suporte social sempre me deu bastante amparo em meio às minhas limitações.
Alguma vez te subestimaram sobre sua capacidade de realizar sonhos? Se sim, conte um pouquinho para nós e como você faz para não deixar a peteca cair nesses momentos!
Eu nunca fui muito de me deixar afetar com esse tipo de opinião alheia, mas já tive sim muitas pessoas me falarem diversas coisas como: “é besteira largar medicina, nunca vai dar certo sua carreira de DJ”, “seu estilo de som não dá certo aqui no brasil”, “sua identidade visual é muito fora do que vende aqui no brasil”. Porém, no fim, eu confio 100% no meu processo e no trabalho, também, de quem está ao meu lado. O que der eu ajusto, mas do que eu tiver convicção de que eu consigo funcionar, eu correrei atrás sem fraquejar.
Se você tivesse o poder de mudar qualquer coisa no mercado da música eletrônica, o que você mudaria?
No Brasil, eu gostaria que a diversidade de gêneros musicais fosse tão ampla como é na gringa. Queria que todas as cenas de house, bass music, uk etc pudessem viver em harmonia, com todas fomentando a mesma cena. É incrivelmente estranho um país com mais de 200 milhões de habitantes se limitar a tech house, comercial, funk, trance e melodic techno para 99% de seus eventos eletrônicos. Brasil pode ser uma grande potência de exportação musical de Bass Music também, ou até de mais vertentes do próprio house, porém pouco se fomenta a cultura, e a própria cena ainda segue com muito preconceito e estigmas em sons mais “underground”
Sobre o Dia Mundial de Conscientização do Autismo, que recado você gostaria de deixar para as pessoas em geral? E para aqueles que possuem o transtorno e desejam ingressar na carreira artística?
Eu queria que ficasse anotado que apesar das dificuldades impostas a nós, aquele velho ditado de que “nada é impossível” segue sendo real, e que sonhos podem se realizar. Só é necessário criar sua própria rede de suporte, tanto familiar quanto social em geral, nem que seja apenas umas 2 ou 3 pessoas correndo ao seu lado. E também confiar no poder curativo e catalisador da música. Ela é sua maior força, e vai te permitir entrar em qualquer lugar e fazer qualquer som que quiser, o importante é não desistir e encontrar a forma mais confortável para você de passar por tudo isso. Eu tenho minha rotina, e nesses três anos e meio de carreira já aprendi (e estou ainda aprendendo) as melhores formas de lidar com coisas que me geram muito desconforto e estresse. Claro que também tenho um psicólogo comportamental que me oferece bastante ajuda para entender meus próprios sentimentos e frustrações. Outra coisa que aconselho é cobrar os seus direitos, eu tenho minha carteira de identificação do autista, e com ela consigo acessar vagas preferenciais de estacionamento, filas preferenciais em aeroporto, e até tenho direito a transporte gratuito pelo estado de Goiás com o meu passe livre. Consulte os órgãos responsáveis de seus estados para mais informações.
HeyDoc! nos mostra que a música eletrônica pode ser sim um espaço para todos, sendo um exemplo para futuros DJs e produtores que também passam por transtornos similares. Sua resiliência, força e determinação extrapolam as barreiras que eventualmente surgem em seu caminho e que poderiam afastá-lo de seu maior sonho. Não somente no dia 02 de abril, mas em todos os outros, a conscientização em relação ao autismo é essencial para construirmos uma sociedade mais acolhedora, respeitosa e humanizada.
Imagem de capa: Divulgação.