O presente artigo não tem como objetivo fazer apologia ao uso de drogas, mas sim promover informações de possíveis consequências desse uso.
Com o crescente retorno dos eventos, festas e festivais após tanto tempo presos em casa, é importante que a gente se atente a uma nova relação que surgirá com as substâncias psicoativas. O momento, que ainda está presente em nossas vidas, da pandemia de Covid-19, foi diferente de tudo que já vivemos! Alguns perderam pessoas queridas e outros embarcaram numa nova difícil jornada com a própria saúde mental. Agora, com a volta das atividades, muitas pessoas acreditam que a melhor forma de aliviar todos esses sentimentos gerados por essa comoção mundial é se esbaldar nas drogas em busca de uma realidade beeeem distante dessa aqui.
Não é de hoje que os seres humanos buscam nas drogas psicoativas uma fuga da realidade e encontro do prazer. A nossa história possui registros milenares de interação com diversas substâncias diferentes. O ópio, por exemplo, foi registrado através de um ideograma pelos sumérios, em 5000 a.C., como a representação da alegria. Se não é nenhuma novidade que a galera afoga as mágoas nas drogas, o melhor que podemos fazer é nos informar sobre os efeitos e as consequências disso, para que os danos sejam os menores possíveis.
No uso recreativo é comum que as pessoas criem expectativas de experimentar boas sensações e sentimentos agradáveis ao utilizar substâncias psicoativas, muito dificilmente elas esperam que aquele momento seja desconfortável. Porém, nem sempre as coisas acontecem da forma que a gente espera, e tudo pode ser muito pior se você não sabe nada sobre como prevenir e lidar com a famosa “bad trip”. Não é sobre esperar que as coisas aconteçam de uma maneira desagradável, mas sim de se colocar na posição de um usuário consciente que reconhece a responsabilidade de exercer a sua própria liberdade.
O que é “Bad Trip”?
Antes de qualquer coisa, vamos conversar um pouquinho sobre esse termo que está ultrapassado e passa uma ideia bem errada da parada toda! Na tradução, “bad trip” significa “viagem ruim”, e de fato, é uma viagem, mas necessariamente ruim? Podemos concordar que as sensações e sentimentos não são confortáveis, porém eles não são provenientes da substância, não é ela que causa isso em você. O que ela faz é dar vasão a tudo que já estava dentro de você, muitas vezes de uma maneira assustadora. Esse termo nos dá a ideia de que ela é a culpada, quando na verdade não é bem assim. Além disso, essa crise psicodélica pode te levar para um caminho de grande autoconhecimento se você souber como lidar com a situação, isso não quer dizer que a viagem será incrível e cheia de flores, mas que pode te ensinar muita coisa sobre você mesmo, e no final das contas não ser tão “ruim” assim. Para você transformar a sua relação com essa situação, as palavras também possuem muita força, você pode substituir por emergência psicodélica, crise psicodélica ou qualquer outro nome que seja mais tranquilo pros seus ouvidos.
Agora vamos ao assunto! A emergência psicodélica é uma consequência possível para quem faz uso de substâncias psicoativas. Ao contrário do que muitas pessoas acham, ela não pode ocorrer somente com o LSD, NBOMe, mescalina e similares, mas pode surgir também da utilização da maconha, ketamina, anfetaminas e outras drogas. A crise psicodélica é uma reação subjetiva, por isso ela será diferente para cada pessoa, assim como também depende de qual droga foi utilizada, em qual contexto, da qualidade psicológica do indivíduo no momento do uso, da experiência com aquela substância e a sua relação com tal.
Apesar da experiência ser diferente para cada pessoa, algumas características são parecidas nos discursos de quem passa por essa situação: sentimentos como ansiedade, medo, confusão, perda de contato com a realidade, pânico, delírios de perseguição ou grandeza, incômodo, apreensão, terror, impaciência e desgaste mental. Alguns desconfortos físicos também podem surgir, como: enjoo, tontura, tremor, dores de cabeça e problemas de ordem fisiológica no geral. Todas essas sensações são amplificadas pelo efeito da droga, fazendo com que a situação seja difícil e angustiante para o usuário. É claro que existem níveis de perturbações, podendo ir desde pequenas inquietações e desconfortos até profundos sentimentos de pânico e ansiedade.
É um momento delicado e sensível para o usuário, afeta seu corpo, sua mente e seu comportamento, podendo inclusive levar a ações que coloquem a sua vida ou a vida de seus colegas em risco, por isso é um estado que merece atenção e cuidado. Em alguns casos a pessoa pode vivenciar flash-backs mesmo semanas ou meses após o consumo.
Como Prevenir a Crise Psicodélica?
Beleza, mas... Agora que eu sei que tudo isso pode acontecer, quais cuidados eu posso tomar?
Drug – Conheça a Substância
Se você olha para uma comida que parece muito esquisita e se pergunta o que tem ali, por que seria diferente com a sua droga? Conhecer aquilo que você está colocando no seu corpo é uma atitude de cuidado para com ele. Saber a procedência (na medida do possível, né! Já que as substâncias ilegais não possuem regulamentação ou catalogação), ou seja, conhecer o fornecedor e utilizar testes colorimétricos para testar sua substância já é um bom começo. Além disso, você também pode pesquisar de que forma essa droga interage com seu corpo, quais os efeitos, as causas desses efeitos, as consequências, os riscos e as maneiras de diminuir os danos que ela pode causar.
Dosagens pequenas também fazem brisas dahoras, prefira menores quantidades e uma re-dose (com cuidado!) do que doses absurdas logo de início. Meia BATE SIM! Tome cuidado com as misturas, elas provocam no corpo uma inter-relação entre as substâncias, por isso busque sobre como elas interagem entre si.
Set – Conheça Você Mesmo
Você precisa aprender a reconhecer seu próprio estado mental e físico, isso quer dizer que você pode tirar um momento pra si antes de tomar qualquer substância… como você está se sentindo? Bem, feliz, triste, incomodado? Essa reflexão sobre o próprio estado é essencial para entender como suas emoções podem interagir com a droga, algumas vezes o intuito do uso é aliviar sentimentos desconfortáveis, porém se você está angustiado ou ansioso e espera necessariamente pelo prazer, é interessante ter consciência que pode não ser o resultado que você irá obter, mas sim um aprofundamento das sensações que você pretende fugir. E o seu estado físico, como está? Você está sentindo alguma dor? Se alimentou bem, está descansado e hidratado? Nosso estado corporal também pode influenciar em como a viagem vai seguir seu rumo, por isso atente-se ao que seu corpo está te dizendo.
É relevante que você conheça o seu histórico familiar, isso pode te fazer descobrir muito sobre si mesmo. Um fator de risco a experienciar uma crise psicodélica são pessoas com tendência a algum transtorno mental. Além disso, se você está sob medicação psiquiátrica, a interação de algumas substâncias com esses medicamentos também se enquadra num fator de risco.
Setting – Perceba o Contexto
O contexto em que você se encontra conta MUITO para sua brisa, e as pessoas que estão com você também. É importante que você se sinta bem, confortável e seguro no ambiente. Também é interessante ter “uma rota de fuga”: Algum espaço onde possa deitar, com poucos estímulos e acolhedor. Tenha com você alguém de confiança, que você saiba que pode conversar abertamente, que irá cuidar de você e te apoiar em momentos difíceis, evite utilizar com pessoas que possam zombar de você ou forçar a sua trip para caminhos tortuosos (existem muitos rouba brisa por ai!)
Como Passar por uma Crise Psicodélica?
Prestei atenção no drug, set e setting e mesmo assim me sinto mal! Como lidar com isso?
Primeiro de tudo: RESPIRE! A nossa respiração nos ajuda a clarear a mente e nos acalmar. Puxe pelo nariz, prestando atenção no caminho que o ar faz pelo seu corpo, e encha sua barriga (para ajudar, você pode colocar uma mão no peito e outra na barriga – sinta a sua mão subir enquanto enche a barriga, e a outra mão ficar parada, evitando que o ar encha o peito), depois solte pela boca devagar. Faça esse movimento quantas vezes forem necessárias, tentando não desprender a atenção da sua respiração até se sentir um pouco mais calmo.
Busque um lugar confortável (lembra da “rota de fuga”?) e continue fazendo o exercício da respiração, chame um amigo para te acompanhar e tome o tempo que precisar para se acalmar. É muito importante você lembrar a si mesmo que está sob efeito da substância e que isso vai passar. Não tenha vergonha de falar sobre como você se sente, fazer barulhos estranhos ou ficar em posições diferentes, lembre-se que esse momento é para que você se encontre consigo mesmo, e só você saberá como fazer isso. Os sentimentos que surgirem são conteúdos que já existiam em você, deixe fluir! Quanto mais você lutar contra uma correnteza, mais você perde sua força e se desespera por não conseguir fazer o que quer, então deixe as sensações acontecerem!
Caso você esteja com dificuldade de ficar parado, busque alguma atividade que você goste de fazer: dançar, pintar, escutar músicas (prefira as mais calmas e que te trazem boas lembranças). Você também pode tentar tomar um banho ou molhar as extremidades do corpo, como pés, cabeça e pulsos.
É comum que você sinta medo ou ansiedade, isso tudo porque você perde o controle da situação, porém saiba que esses sentimentos são tão válidos quanto outros, então permita-se senti-los, mas não se agarre a eles!
Como Ajudar meu Amigo na Crise Psicodélica?
Meu amigo tá malzão, aqui não tem nenhum redutor de danos e eu quero ajudar. O que eu posso fazer?
Você não pode se desesperar junto! Então se também estiver se sentindo ansioso, respire antes de ajudar, você não pode auxiliar o outro se não estiver disponível emocionalmente e fisicamente para isso.
Comece ajudando o seu amigo a respirar, e LEMBRE-SE: só encoste na pessoa após ela te dar permissão e você ter deixado muito claro que fará isso. Ajude-o a encontrar um lugar calmo e uma posição aconchegante, o seu dever aqui é ser um suporte, não um guia. Você pode perguntar se ela quer ajuda para respirar e fazer uma respiração guiada (acalme a sua respiração também), use palavras simples como “inspira” e “expira” ou “puxa” e “solta”, preste atenção na velocidade em que a pessoa está e não tente impor um ritmo a ela. Quando você perceber que ela está mais tranquila, se volte às necessidades básicas: se ela quer ir ao banheiro, se precisa de água ou comida, se está sentindo alguma dor ou se precisa de cobertor ou uma roupa mais leve. Cuidado para não bombardeá-la de perguntas, dê tempo ao tempo e vá sentindo os momentos em que pode obter mais informações para deixá-la bem.
Forneça um espaço de carinho e cuidado, lembre seu amigo de que está tudo bem, que você está com ele e que tudo isso vai passar. Se ele quiser conversar, use um tom calmo e seja um bom ouvinte, tome cuidado com as pontuações que você pode fazer, nesse momento tudo é muito sensível, prefira escutar do que falar. Não julgue, não dê sermões, não fique querendo investigar as causas do sofrimento do seu amigo. Caso ele não queira conversar, só fique ali e não o deixe sozinho, é muito importante que a pessoa se sinta acompanhada.
Se o caso estiver num grau muito severo, tente acalmá-la com as palavras e fazê-la ver que pode se machucar ou ferir os outros – em casos de agressividade – a contenção física pode causar bastante sofrimento psíquico, então deixe essa opção para o último caso somente se for absolutamente necessário. Às vezes, é difícil tomar essa decisão, mas se você não estiver conseguindo conter o seu amigo e ele se encontrar completamente descolado da realidade, agitado e agressivo, busque assistência profissional, principalmente se ele estiver tentando atentar à própria vida ou à vida de terceiros. Claro que você pode acompanhá-lo e garantir que os seus direitos sejam atendidos, como o direito a um atendimento de saúde de qualidade, livre de preconceitos e paradigmas, além do mantimento da sua integridade física.
Pós Crise Psicodélica
Ufa… Passou. Mas e agora, como eu faço para entender tudo isso que eu aconteceu?
Depois da montanha-russa de emoções, muitas pessoas ficam com aquela ressaca moral, e ai é interessante que você integre essa situação à sua vida e entenda o que rolou. Primeiro evite utilizar a mesma substância por um tempo e reavalie a sua relação com ela, isso quer dizer que você nunca mais vai tomar? Não! Mas quer dizer que você pode repensar a quantidade de informação que você tem sobre ela, a dose, a forma como você estava se sentindo, o contexto e as pessoas que estavam com você na viagem, e claro, SE for a sua escolha, não utilizá-la mais ou consumi-la de uma maneira diferente.
Tire um tempo para entender o que aconteceu com você, quais foram os pensamentos que você teve, os sentimentos (medos, angústias, incertezas), as sensações corporais e o que essa experiência estava trazendo de dentro de você, o que ela significou e como você pode usá-la para conhecer um pouco mais sobre você mesmo. Você também pode buscar ajuda profissional, como um psicólogo, ou mesmo conversar com seus amigos sobre a situação e o desenrolar de tudo. O importante é que você encontre formas de continuar externalizando esses sentimentos para poder dar uma conclusão a essa experiência, de maneira que você possa ressignificar um momento de desconforto em novas perspectivas.
A gente finaliza trazendo a importância que os eventos, festas e festivais se conscientizem sobre contratar equipes de redução de danos. Ainda não há atenção suficiente para esse aspecto, e cuidar da saúde dos clientes também deveria ser um requisito básico. A utilização de drogas psicoativas foi e é uma realidade, então fechar os olhos para isso é concordar com a maneira que as coisas são feitas, por isso prefiram escolher eventos que se preocupem em cuidar de você.
Referências:
- https://revistas.esuda.edu.br/index.php/humanae/article/view/569
- https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/196364
- https://www.scielo.br/j/sdeb/a/hVpfzN4hKrdgRdwLb4V3cDK/?lang=pt
Sobre o autor
Isabella Ferreira
Estudante de Psicologia que se aprofundou nas práticas da redução de danos ao se conscientizar que há melhores e mais eficazes formas de olhar o uso e abuso de drogas. (Co)fundou o coletivo Clã Dahlia em 2019, quando pôde começar a atuar em festas e festivais através de informação, testagem e apoio em crises psicodélicas. Em 2021 iniciou seu projeto como DJ de Hardbeats, tornando-se membro da Zoom Records, Hard Family BR e Darkness Society. Também é amante dos estudos esotéricos e da tarologia.
Clã Dahlia
Um coletivo nascido em 2019 na regência do signo de Libra, com a missão de proporcionar à todos(as) um olhar amplo para o ser humano, que é biopsicossocial e holístico. Nós queremos desenvolver juntos o corpo físico, o intelecto, o ser social, o corpo espiritual, as nossas características únicas, a afetividade e nossa ligação indissociável com a natureza. Buscamos maneiras de trabalhar isso através da redução de danos, naturologia, expressão artística, tarologia e consciência ambiental.