Entenda porque as paradinhas estão batendo diferente nos últimos tempos.
O conteúdo deste artigo visa informar e levar conhecimento às pessoas, não fazer apologia às drogas nem a qualquer tipo de aglomeração durante a pandemia do covid-19.
O cancelamento dos grandes eventos de e-music pelo mundo no início do ano passado fez cair a ficha dos clubbers sobre os impactos da pandemia no universo dessa cultura. Mais de um ano se passou e todo esse tempo sem festa causou uma mudança drástica nos rituais de celebração/comemoração/diversão, ou seja lá como você nomeava seu rolê.
Sem a possibilidade de curtir a vibe aglomerada das dancefloors noite adentro ou dos grandes festivais no campo, tivemos que nos adaptar a novas realidades nada empolgantes. Seja ocupando o fim de semana pra curtir lives com cia apenas virtual, se reunindo com poucos amigos em casa ou até mesmo frequentando festas clandestinas, nada mais é como antes, exceto nossa necessidade de desopilar, e obviamente, as drogas.
Ganhadora invicta da guerra às drogas desde seu início, as drogas estão aí intocáveis ano a ano fazendo parte da sociedade e da vida de todos nós, independente de cor, credo ou classe social. Sabemos que de um modo geral, quanto mais difíceis são as situações, maiores as possibilidades de seus usos se tornarem problemáticos, e convenhamos, não é de hoje que acordar todo dia no Brasil não está nada fácil.
Sem moralismos por aqui. Independente de quais você curte, sejam lícitas ou ilícitas, não há espaço para julgamentos e sim para informação. A questão é: a cerveja que você consumia no bar, e/ou a bala/doce/MD/key/pad que você consumia na rave, agora se quiser consome em casa. Mas, pra quem gosta de curtir sob estados alterados de consciência, a pandemia não alterou apenas os contextos, ela também alterou sua brisa!
Nos anos 1980, embalado pela teoria de Thimoty Leary, o médico Norman Zinberg expandiu a perspectiva sobre os usos dos psicoativos ao evidenciar que os efeitos das substâncias vão além dos farmacológicos, incluindo outros dois importantes fatores que são: set e setting. O set está ligado ao interior, ao estado mental. Seus pensamentos, atitudes, expectativas, humor, ou seja, sua personalidade. Já o setting está ligado ao exterior, ao espaço físico e social.
Não se pode esperar o mesmo efeito de uma substância quando consumida em um evento, que foi previamente preparado com planejamento de line-up, luzes, decoração e a presença de amigos, de quando consumida em casa sozinho, ou na rua por exemplo, onde além de não ter toda a ambientação festiva, você fica exposto a diversos perigos. Muitos fatores influenciam na experiência com as drogas. Uma pessoa com medo, estressada, num ambiente inseguro ou que não a agrada, possui uma maior probabilidade de ter uma experiência ruim, as chamadas badtrips. Já uma pessoa tranquila, disposta, em um ambiente agradável, seguro e confortável, possui uma maior probabilidade de ter uma experiência prazerosa.
Resumo da ópera: a pandemia do covid-19 está roubando sua brisa!
Não importa qual contexto as pessoas estão usando suas drogas, algo é inegável: set e setting já não são os mesmos e com isso os efeitos das substâncias também não. Se depois de tanto tempo sem rolê, com notícias de morte por todos os lados, com a situação política brasileira que nem vamos citar pra não piorar, salários congelados, desemprego, medo de ser contaminado pelo vírus, você ainda acha que seu estado mental (set) não está alterado, sinto te dizer mas provavelmente você já enlouqueceu! É perceptível em todos os ciclos sociais o quanto estamos mais sensíveis e afetados por este momento. Quem consumiu alguma droga nos últimos meses (e o álcool está fortemente incluso aqui) e fizer uma reflexão sobre seus efeitos, provavelmente entenderá com mais facilidade o que esse texto está tentando alertar.
Antes de decidir sobre qualquer uso, é importante se questionar sobre a finalidade da experiência, entender seu momento, o seu ‘set’ específico, e as implicações que isso te causará. As drogas potencializam o que já existe em você, seus sentimentos, emoções... Ou seja, estar bem é um item fundamental pra evitar situações-problema e badtrips de modo geral. Caso você decida fazer qualquer tipo de consumo, algumas dicas podem reduzir os riscos e danos associados a eles neste momento:
- O ideal é nunca consumir droga nenhuma sozinho, pois caso você passe mal, dificilmente alguém conseguirá te socorrer. Ainda assim, se decidir fazer qualquer uso dessa forma, jamais faça em local público e nunca deixe de avisar algum amigo sobre seu plano. Mantenha contato com outras pessoas sempre que possível;
- Transforme o ambiente. Abuse dos itens audiovisuais, como vídeos ou luzes diferentes, projeções… Água é o básico do básico, e além disso, aquele ditado “uma droga, uma fruta” não foi divulgado atoa, então tente não ficar muitas horas sem comer;
- A música é um dos fatores mais importantes do setting pra se viver uma boa experiência, caso contrário as celebrações festivas e até mesmo os rituais espirituais ao longo do tempo não teriam utilizado essa ferramenta. Por isso, ter sons agradáveis aos ouvidos, além de evitar badtrips pode também elevar a experiência a um grau maior de satisfação;
- Além desses fatores, é muito importante se atentar ao ambiente. Se você não mora sozinho, é preciso respeitar os outros moradores e evitar ter problemas de relacionamento com quem convive com você nesse período em que estamos obrigados a nos rodear de poucas pessoas. Escolha ambientes calmos, onde quem não foi convidado não aparecerá, caso contrário, grandes serão as chances de uma situação-problema acontecer. Ainda mais se essas pessoas forem seus pais.
Essas dicas são pequenos detalhes que podem fazer diferença nesse momento tão delicado aos que não desejam ou não conseguem interromper seu consumo de drogas, e estão limitados a sua casa ou pequenos encontros em casas de amigos. Além disso, temos uma parcela de pessoas que continuam frequentando festas clandestinas. É importante entender o porque esses eventos não funcionam como modelo dos tempos pré-covidianos. Apesar de ser um ambiente festivo e ‘teoricamente’ planejado, ainda assim existe o alto risco de infecção pelo covid-19, e também chance das autoridades encerrarem o evento e todos irem parar na delegacia. Com certeza essas possibilidades alteram o set e o setting de maneira muito desfavorável. Imagine só você no auge da sua brisa e de repente vive a cena do vídeo abaixo:
Se mesmo ciente da gravidade de todos os riscos da atualidade, você não consegue deixar de se expor ao vírus em eventos, um dos princípios da redução de danos é não fazer julgamentos e aqui não os faremos, pois é preciso reconhecer que cada ser possui uma compreensão subjetiva de consciência. Porém, algumas ações podem auxiliar na redução dos riscos de contágio das pessoas que convivem próximas a você, e que na maior parte das vezes são seus entes queridos.
Ao chegar em casa após eventos com aglomerações, mesmo que esteja chapado, tente redobrar os cuidados. Atitudes como tirar os sapatos, tomar banho, separar as roupas, fazer aquele auê de álcool por toda a parte (sem fumar nesse momento, por favor), e usar máscara mesmo dentro de casa nos dias seguintes, podem evitar a transmissão do vírus. É chato e difícil? Pode até ser, mas é uma atitude de responsabilidade afetiva, que diminui as chances de contagiar pessoas que provavelmente não possuem a possibilidade de se protegerem de você no caso da sua contaminação.
Apesar da maioria das pessoas que consomem drogas manterem suas vidas sociais, profissionais e familiares, sabemos que a dependência do álcool e de outras drogas é um fator de saúde pública cujos desdobramentos são sempre trágicos. Com as mudanças no set e setting cada vez mais evidentes devido ao tempo de permanência da pandemia, infelizmente é provável que as alterações nos efeitos das substâncias em algumas pessoas estejam causando uma acentuação no sofrimento delas e criando situações problemáticas e consumos e/ou reações indesejáveis. Cabe ressaltar que o uso recreativo de drogas, que é caracterizado pelo uso social, não regular, normalmente feito em situações festivas, quando levado para dentro de casa em situações comuns do dia-a-dia, usado como válvula de escape para situações cotidianas, é um hábito com grandes possibilidades de resultar no vício, consequência que as substâncias causam no cérebro, e que também podem agravar quadros de depressão/ansiedade.
Os limites entre o uso recreativo e problemático muitas vezes são sutis e por isso difíceis de serem percebidos. O corpo ganhar resistência aos efeitos das substâncias (bebia 4 cervejas, agora precisa beber 10 pra chegar no efeito desejado), a banalização dos motivos para consumi-las, o desinteresse em praticamente tudo que não seja ficar chapado, queda na performance profissional e escolar, e o comprometimento nas relações familiares e afetivas, são fatores de alerta e que muitas vezes precisam de ajuda para serem solucionados.
Num mundo ideal, todos estaríamos consumindo nossas drogas favoritas numa boa, porém ao pensar nesse cenário, a realidade mal nos deixa começar, e por isso, caso você ao ler esse texto tenha se visto em situações citadas acima, e/ou não consegue diminuir ou parar seus consumos, é preciso pedir ajuda. Muitas vezes apenas conversar resolve boa parte das coisas. Aumentar o tempo entre um consumo e outro, e manter as atividades regulares cotidianas, como academia, boa alimentação, leitura e outros hobbies de sua preferência, também podem ajudar a manter o equilíbrio e evitar o consumo problemático de drogas lícitas e/ou ilícitas.
Se precisar de ajuda, listamos algumas opções pra que você possa contar com apoio:
- Antes de tudo, caso você não conheça o projeto PREPARTY, é um canal com muita troca de informação onde as pessoas conversam abertamente sobre tudo, e contém informações importantes sobre os efeitos das drogas, que podem te ajudar até mesmo a compreender coisas que são naturais e temporárias, como as rebordoses, que são causadas pelos consumos e que, às vezes, você ainda não se familiarizou com elas;
- Além do Preparty, os coletivos de Redução de Danos são formados por equipes multidisciplinares que estão acostumados a realizar atendimento em eventos, muitos deles possuem perfis nas redes sociais, estão familiarizados com os amantes da música eletrônica e podem conversar contigo;
- Confira alista de opções para atendimento psicológico on-line, gratuito ou pagando valor social divulgada pelo G1 em abril;
- A maioria das Universidades possui clínicas de psicologia com atendimento gratuito para a comunidade, e durante a pandemia muitos atendimentos também são realizados de forma virtual. Vale a busca por alguma próximo a você;
- Caso esteja muito difícil lidar com a situação e você não se sinta a vontade para conversar com amigos, coletivos de redução de danos ou qualquer outro espaço de apoio, o Centro de Valorização da Vida realiza apoio emocional e prevenção do suicídio, atendendo voluntária e gratuitamente todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo por telefone, email e chat 24 horas todos os dias.
Não percamos a esperança! o melhor e o pior da vida é que nada dura para sempre. Que muito em breve possamos nos abraçar numa pista bem aglomerada liberando todo o acúmulo de energia e de músicas que temos a dançar!
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Samuel Carvalho
Publicitário e artista criador @dosamuelismo, apaixonado por techno e trance. Estudou redução de danos para a cultura psytrance em sua dissertação de mestrado, e acredita na informação como principal fonte de cuidado aos frequentadores dos eventos de e-music.