O processo de embranquecimento e heterossexualização da música eletrônica
Ao longo da minha vida frequentei dezenas de eventos de música, mas as festas de eletrônica sempre foram as minhas preferidas. Mesmo gostando tanto, questiono: como algo que nasceu dos movimentos de minorias marginalizadas — negros e LGBTQIA+ — tem pouquíssima representativa nas cabines de DJs e posições executivas? A ideia deste artigo não é estabelecer um registro único, mas apontar as raízes periféricas da cultura house.
O atual público que tem chegado é de pessoas heterossexuais e brancos que estão distantes da comunidade negra e LGBTQIA+. Eles precisam ter consciência da importância que essas comunidades têm para a constituição do house. Esse DNA é feito de luta por igualdade e diversidade. Portanto, não se pode corromper a música e renegar o papel histórico que o house music teve junto à comunidade negra e LGBTQIA+.
Para entender melhor fui pesquisar sobre o que pode ter provocado o embranquecimento e heterossexualização da música eletrônica. Durante a década de 1980 a indústria musical dos Estados Unidos buscava por recuperações financeiras devido aos prejuízos acumulados com o investimento no disco music. O gênero caiu das principais paradas devido à forte repressão que sofreu entre os anos 70 e 80. Isso fez com que a produção musical fosse reduzida a zero. O que já estava pronto foi devolvido para os produtores.
“Era incrível o número de músicas lançadas e a popularização. Tínhamos emprego, fazíamos uma boa grana e de repente não se conseguia tocar em lugar nenhum”, disse o DJ Steve Smokin Silz para o documentário Pump Up The Volume (2001).
Os DJs tiveram que se recompor. Não tinha lançamentos novos! Mesmo assim eles foram lá e se reinventaram, fizeram mixagens com as produções de disco que ficaram paradas após o abandono da indústria musical. Frankie Knuckles, DJ residente do famoso club The Warehouse fundado por Robert Williams, fez muito disso.
O resultado das mixagens não tinha nome definido, quando as pessoas procuravam o som nas lojas de vinil diziam que queriam ouvir “as músicas tocadas no Warehouse”. Ao responder, os vendedores simplesmente abreviavam o nome para “house” ou “house music”. O DJ Chip E, que na época trabalhava em uma loja de vinil de Chicago, diz: “Começamos a escrever nos selos dos discos ‘house music’. Depois de um tempo as pessoas passaram a perguntar: ‘cadê as novas do house music?’ referindo-se as músicas tocadas no club The Warehouse pelo DJ Frankie”, que logo depois virou uma lenda do house.
O gênero se popularizou em toda cidade de Chicago o que acarretou nas primeiras mudanças significativas. O público branco, heterossexual e com maior poder aquisitivo começou a frequentar festas no The Warehouse, sem qualquer respeito com o público negro e LGBTQIA+. Vendo a possibilidade de aumentar o lucro, Robert Williams dobrou o preço da entrada.
Logo, o local deixou de ser um ambiente acessível e seguro para as minorias. DJ Frankie deixou o club e fundou outro em Chicago chamado Power Plant. O conforto, segurança e liberdade oferecidos pelo local atraiu todo público negro e LGBTQIA+.
A saída de Frankie do club The Warehouse provocou o fechamento da casa, e Robert também fundou outro club em Chicago chamado Music Box. A galera de lá era composta por pessoas brancas e heterossexuais que não tinham acesso ao house até conhecerem o Warehouse.
O fim da parceria entre Frankie e Robert deu início a uma rivalidade que fez com que a cena da cidade sustentasse o pioneirismo do house mundial. Contudo, as gravadoras da época descartaram o potencial do novo som devido a relação com o disco music e a marginalização desse gênero.
O house só atingiu o mercado mainstream por volta dos anos 1985 com a “Music Is The Key” de KM Silk. Na ocasião, atingiu 85 mil cópias vendidas e o nono lugar na parada “dance” da Billboard em 1985. No ano seguinte as músicas chegaram até o Reino Unido onde rapidamente alcançaram o topo no ranking de vendas com “Jack Your Body”, também de JM Silk.
Nos primeiros anos em solo europeu, muitos DJs de Chicago fizeram turnês internacionais. A boates Heaven e Shoom foram um dos primeiros locais a sediar eventos de house music no Reino Unido. Nenhum desses clubes atendia explicitamente a população negra ou LGBTQIA+.
O sucesso chamou atenção das autoridades que pretendiam fechar o cerco contra o uso excessivo de ecstasy. Para evitar a pressão policial, os produtores de evento começaram a organizar festas clandestinas em vários locais de Londres e fora da cidade e assim surgiu a cultura rave.
Luis-Manuel Garcia, pesquisador e professor na Universidade de Birmingham, explicou no artigo “An alternate history of sexuality in club culture” publicado no site Resident Advisior que: “A cultura rave promoveu amor e liberdade como valores fundamentais, mas manteve os papeis tradicionais de gênero e sexualidade intocados. Isto é, enquanto enraizada na vida de negros, gays e latinos que vivem nos Estados Unidos, no Reino Unido a rave se tornou um fenômeno majoritariamente branco e heteronormativo”.
Ao contrário da América, rapidamente a Europa percebeu o potencial econômico da cena e começou a produzir artistas próprios em versão muito mais comercial, alterando a estética de Chicago. A partir daí houve a popularização do gênero através das mídias de massa. A globalização desses eventos com a estética da Europa deixou de atrair minorias marginalizadas e restringiu as festas a um público jovem, branco, de classe média e heterossexual.
As gravadoras norte-americanas erraram muito ao boicotar o house devido a relação com o disco music. A perseguição e o boicote contra as minorias apaixonadas pelo gênero não foram suficientes para conter a expressão e o entretenimento cultural da cena underground. As saídas criativas encontradas pelo povo marginalizado deram origem ao novo som chamado house durante a década de 1980 na cidade de Chicago.
A exportação do house dos Estados Unidos para o velho continente não apagou a origem do gênero, mas alterou o futuro para sempre ao manter os padrões tradicionais da Europa quase que intrínseco ao house. Foi somente lá que escolheram investir em produtores próprios para criar artistas e eventos que foram disseminados para o mundo todo.
Uma vez que o estilo se torna um fenômeno global massivo, fica muito mais difícil para as pessoas marginalizadas e perseguidas permanecerem nos quadros de destaque. Outra razão é que a história é escrita por vencedores: à medida que o house se tornou mainstream, as pessoas que deram continuidade a história eram brancas, héteras e de classe média.
Imagem de capa: reprodução Assim que Rola
Sobre o autor
Renan Fernandes
28 anos, fotógrafo e jornalista que fala sobre política, sociologia, filosofia e música.