Hoje é o Dia Internacional da Dança, e confesso que se não fosse por aviso prévio de um amigo a data passaria despercebida por mim. Mas hoje é um dia importante demais para não escrever sobre.
Lá pelos meus 5 anos de idade, existia um sistema de som enorme na sala de estar que meus pais raramente usavam, só em eventos em casa como Natal e Dia das Mães. Naquela época, fissurada pela Britney Spears, colocava os CDs para tocar, subia no sofá e dançava olhando para um grande espelho posicionado na parede em frente. Com o passar dos anos comecei a me sentir desconfortável com o fato que meus pais me viam dançar e achavam graça (mas, na época, eu não entendia o porquê daquela graça toda). Decidi, então, mudar minha pista de dança da sala para o conforto do meu quarto, tornando esse momento ainda mais pessoal e privativo - e nunca mais parei.
Hoje, com um novo sistema de som equipado no quarto, com vinis da minha própria coleção e com a graça de ter vizinhos compreensivos - e de bom gosto - que não reclamam da música escandalosamente alta nos piores horários possíveis (de preferência, à noite), tenho o privilégio de dançar sozinha. Privilégio, disse, porque dançar sozinha é uma das melhores experiências possíveis e, ao mesmo tempo, não me requer muito esforço e nem tempo de locomoção para algum lugar em busca da música alta.
Logo, danço. Suo. Pulo. Canto. Cabelos esvoaçam para um lado, e depois para o outro. Imagino situações das mais diversas que ambientam o meu quarto escuro e tornam aquela experiência ainda melhor. Me chamem de louca, se quiserem, mas faço isso rotineiramente e já perdi a vergonha de me expor para os vizinhos do prédio ao lado, que de vez em quando olham para ver 'o que aquela garota doida tanto dança com esse som tão confuso?'. Torno do tapete do quarto uma pista de dança das mais efervescentes. Sinto calor e visto pouca roupa, sem nada que possa prender os movimentos que meu corpo - consciente ou inconscientemente - faz.
A trilha sonora pode ser diversa, depende do dia e do humor, mas sempre priorizo o house, o techno e suas sub-vertentes, como o minimal e o acid. Vou de set em set, às vezes deixando rolar, outras vezes selecionando os melhores drops de cada um. Aliás, é nesses momentos que acabo conhecendo tracks e novos artistas, seja com o Shazam ligado há horas ou depois do ritual acabar, quando fico ainda mais inspirada e energizada para pesquisas musicais. É quando dançamos que sabemos se uma música é boa ou ruim; a matemática é simples - vindo de mim, que tem dificuldades com subtrações e frações, pode confiar. Se te faz dançar, é boa. Se te faz sorrir e dançar, é melhor ainda. E se automaticamente te tele transporta para um club ou festa, é a música certa para botar na playlist.
Dançar vai muito além de só mexer a perna para frente, o braço para trás, a cintura para o lado e o pescoço para o outro. Desde a Pré-história, quando os homens batiam os pés no chão e nem havia música de fundo, o ato já tinha valores inconscientes agregados. Ao dançar, fazemos do nosso corpo um instrumento de comunicação, e cada tipo de dança (street dance, sapateado, balé, samba, do ventre, entre tantos outros) é um signo para o Outro (aquele que assiste).
De acordo com Dario Caldas em "Observatórios de Sinais: Teoria e Prática da Pesquisa de Tendências" (2015), os 'signos' ou 'sinais' são entendidos como indícios, vestígios, presságios ou manifestações de algo, indicando a existência ou a verdade de uma coisa. A ciência dos sinais, conhecida como semiologia, estuda os signos no interior da vida social e define sinal como "um fato imediatamente perceptível que nos faz conhecer uma coisa a propósito de outra que não o é". Portanto, sinais são características 'pré-entendidas' que dão pistas de um todo, ainda não compreendido por completo. De acordo com a teoria da informação, o 'signo' é toda unidade que entra na composição da mensagem - e se estamos falando em mensagens, logo estamos falando em comunicação. Assim, a dança é signo e também comunicação.
Antigamente, as danças eram usadas em rituais religiosos em que as pessoas faziam agradecimentos ou pediam aos deuses o Sol ou a chuva. Depois apareceram na Grécia, Roma e Japão para finalidades distintas, e no período renascentista tinham também caráter teatral. No século XVI surgiram os primeiros registros das danças em que cada localidade apresentava características próprias, e no século XIX surgiram as danças feitas em pares, como a valsa, o tango e outras. Em cada época, o ato de dançar era um ato de comunicar algo, sem a necessidade de palavras, para a sociedade vigente.
Já hoje, com a mistura dos povos e com os aspectos culturais difundidos, a dança não necessariamente precisa de um objetivo final, como evocar a chuva para a plantação, ou de um palco para servir de entretenimento - e a maior prova disso é que eu danço sozinha no meu quarto para mim mesma, e mais ninguém. Mas não é por isso que ela deixa de comunicar: ao dançar solo, expresso as emoções mais complexas e profundas que uma mente humana consegue sentir. A felicidade, por exemplo, explode como ecstasy naturalmente fabricada pelo corpo. Assim, faço disso um contexto para me auto expressar sem julgamentos nem proibições - e se tiver que sair tristeza, que ela saia intensa assim como a felicidade.
Em festas, vejo pessoas dançando sozinhas, outras em grupo e uns gatos pingados que parecem dançar mentalmente (o que tá tudo bem, também). Cada pessoa tem uma variedade de movimentos para cada beat da música, e quando estamos falando em mil, dez mil ou cem mil pessoas, isso vira uma avalanche de cinesia. Logo, a festa como um todo torna-se quase um ser-vivo que pulsa com dinâmica e energia o que cada um, na sua própria individualidade, produz. Dessa maneira, a festa comunica os mais diversos sentimentos enclausurados do público e transforma-se - pelo menos na minha visão - em um lugar sagrado. Não é à toa que tantos clubbers acham esses lugares sagrados e caracterizam o momento de cerimônia ou culto (no melhor sentido da palavra).
Em um momento tão delicado como o atual, dançar torna-se essencial. Nossa liberdade foi restringida por um bem maior (no caso, evitar mais mortes por Covid-19), e o sentimento de estar cativo, com a incapacidade de mudar a situação por conta própria, consome muito do nosso bem estar físico e principalmente mental. É lógico que tudo fica mais pesado, e sem encontrar amigos e família para desabafar essa sensação torna-se exponencial. Por isso existem muitas formas de 'botar para fora' o peso, entre elas a escrita, a leitura, a pintura e, também, a dança. E ao dançar, você herda o princípio fundador da dança: a comunicação, que não precisa de palavras, letras ou sons para fazer sentido.
Eu danço, tu dança, nós dançamos. E que para sempre continue assim.
Sobre o autor
Lisa Uhlendorff
Do marketing à produção de eventos e agências de booking. Sou dessas que gosta de fazer um pouco de tudo - com sede de conhecimento, amante dos livros e apaixonada por pessoas e lugares. Morei em Amsterdã e em Barcelona me aventurando no mundo da música eletrônica underground. Hoje, trabalho na M-S Live e na ARCA, em São Paulo.