Em Julho de 2019 fiz uma das minhas maiores loucuras. Pedi demissão do meu antigo emprego, ajeitei uma mala (mentira, foram três) e decidi morar fora por alguns meses, que acabaram virando quase ano. Era 'inverno' em São Paulo, daqueles que a gente bota um casaquinho leve, e eu só pensava no verão europeu que me esperava pela frente. Meu primeiro destino? Amsterdam. E depois? Barcelona. Só de lembrar, os pelos do braço arrepiam.
Mas calma, não fui tão doida assim de só viajar sem planejamento prévio. Pelo contrário, além do básico para qualquer viagem prolongada, decidi mergulhar em matérias que não tinha estudado antes para voltar com diplomas e conhecimentos adquiridos. Porém, ao contrário de muitas pessoas que planejam um intercâmbio, eu optei por não chamar conhecidos, nem amigos e muito menos familiares. Era a minha experiência, e eu sentia uma necessidade de viver ela ao máximo sem nenhum empecilho da minha vida em São Paulo. É claro que não deixei de ligar para a minha mãe semanalmente, mas tentei ao máximo me desligar de um passado que, por vezes, me prendia em preconceitos, medos e anseios.
Alguns me perguntam porquê escolhi Amsterdam e Barcelona, mas sei que, assim como eu, vocês que são clubbers, ravers e festeiros atenciosos sobre a cena eletrônica mundial sabem que essas são cidades-chaves para uma ótima vivência musical - entre outras como Berlim, que não escapou do roteiro turístico. Como uma fissurada em clubs e festivais, coloquei a música eletrônica em primeiro lugar e só depois pensei na faculdade, na hospedagem e no dinheiro que era necessário. No fim, o plano deu certo. E assim fui, sozinha, mergulhar na cultura holandesa e catalã, com um frio na barriga que parecia formigar o corpo todo.
Na primeira semana dessa aventura me deparei com meu primeiro desafio, um que eu definitivamente não tinha enfrentado antes: ir em festas sozinha. Em São Paulo, era normal pegar um uber e encontrar alguém na porta do evento - para alguém que vai em tantas festas que fica com preguiça de ir nos esquentas. Em São Paulo, se me perdesse na pista, mandaria mensagens para achar um amigo no bar. Caso fosse trabalhar no evento, a solidão é praticamente inexistente e a concentração é totalmente voltada nas inúmeras missões da noite. De qualquer maneira, no Brasil, eu nunca estava sozinha pois sempre existia um rosto conhecido no meio da pista ou no backstage que servia de conforto contra a solitude.
Engana-se quem crê que ter centenas e milhares de pessoas ao seu redor vai abafar o sentimento de estar sozinho. Isso é mentira. Estar só vai muito além da ausência de um outro corpo físico ao seu lado. Na verdade, estar só é um dos grandes males da sociedade atual que acredita estar em companhia o tempo todo, de forma presente ou virtual, mas que no fundo mesmo continua sozinha. Eu também cometi esse 'equívoco sentimental' até me enfiar no primeiro festival em Amsterdam: o Dekmantel. O true Dekmantel, de 3 dias de duração, com a clássica pistinha do Boiler Room e mais outras 5 pistas espalhadas por uma floresta colossal no meio da Holanda. Aquele Dekmantel que o acesso ao público é feito de bike e, por isso, demorei 45 minutos pedalando para chegar no local.
A grande sacada por trás da solidão é que, quando compreendida de uma maneira construtiva, torna-se uma grande motivadora. Pense comigo. Você tem duas opções ao se encontrar só entre 30 mil pessoas: a primeira delas é o completo desespero que resulta em nóias sem fim ("não tenho amigos aqui..." ou "e se acontecer alguma coisa?"). Já a segunda opção é usar o lado ruim da coisa ao seu favor, ou seja, aceitar sua situação atual e transformá-la em experiência. Não tem amigos? Vá trocar ideia com alguém no fumódromo. Não sabe para qual pista ir? Vá em todas.
Sei que parece uma solução fácil para um momento difícil, mas a solução contra a solidão não está em se excluir ainda mais. É preciso enfrentar a situação - assim como em tudo na vida. Levando em consideração que você tem apenas algumas horas para enfrentar a solidão em um festival, a ação deve ser rápida para resolver o 'problema' o antes possível, assim curtindo mais e se preocupando menos.
Com isso em mente, a Lisa de 20 anos bolou um baseado, pegou uma cerveja no bar e se enfiou na pista principal. Eu tinha um isqueiro, mas me fiz de desentendida e pedi para um loiro bonito ao lado. Se ele não tivesse isqueiro, pelo menos a oportunidade de resenha existia, né? Ele me perguntou "are you alone?", eu respondi "yes" e ele retrucou "not anymore", me apresentando para vários colegas franceses. Très bien!
Infelizmente (ou felizmente) meu amigo francês só esteve presente no Dekmantel e minha lista de 'festivals to go' só aumentava. Basicamente, toda experiência foi única: em alguns fiz amizades, outros optei por não fazer. Foi o caso do Loveland. Foram 2 dias de festival, e entre alguns papos-furados fui me deslocando de pista em pista. O foco principal era a música - aliás, sempre foi, desde a escolha da cidade. Se a música é sua maior companhia, você não precisa mais do que isso. No Loveland, fechava os olhos e sentia o bass das caixas como nunca antes. Tive uma sensação de estar mais atenta para o que acontecia ao meu lado. Ouvia várias conversas nas mais diferentes línguas. Percebia de uma forma mais sensitiva os rostos, gestos e expressões do público de cada pista. Consegui analisar os estilos de pessoas que nunca tinha visto antes na vida e nem voltarei a ver. Colocando a música em primeiro lugar, o resto do festival se transforma em percepções sobre si, sobre o outro e sobre o contexto - muito semelhante a uma sessão de terapia intensiva. Estar sozinho aguça nosso sexto sentido.
Em Setembro, a temporada de festivais em Amsterdam chegou ao fim. Foi minha vez de embarcar para Paris, Budapeste e Berlim - com direito a uma missão bem sucedida de entrar em Berghain, mas isso fica para uma próxima coluna.
Aterrizando em Barcelona, meu segundo destino de longo prazo (que hoje tenho o privilégio de chamar de segunda casa), o verão estava por acabar. Fiz amizades com um grande grupo de brasileiros e os acompanhei nos festivais que restavam na lista, e quando o verão se transformou em outono, a temporada dos clubs começou - 'meu momento de brilhar', como diria a clubber de carteirinha.
Até esse momento, enfrentar a solidão e o frio na barriga tinha amenizado em grande parte. Porém, os clubs têm algumas diferenças cruciais dos festivais: uma só pista, menos gente e curta duração. Assim, por mais contraditório que pareça, a redução da grandiosidade do festival para o conforto de um club acaba por potencializar todos os nossos sentimentos.
O prazer de ir em clubs sozinha, como fui na Input, Pacha e Archives incontáveis vezes, foi a oportunidade de conhecer pessoas novas, entre grandes nomes por trás da cena eletrônica barcelonense. Com um pouco de estratégia e muita sorte (confesso que o Universo ajudou unindo pessoas na hora certa e no lugar certo), consegui formar amizades com promoters e donos de clubs que agregaram muitíssimo para a minha profissão - com reflexos que chegaram ao Brasil. A atmosfera intimista dos clubs tornam esses lugares perfeitos para unir pessoas de forma recorrente, e depois de algumas semanas é normal reconhecer o rosto de alguns gatos pingados que estão sempre por lá. Aquele sentimento de solidão acaba se diluindo com o tempo, dando espaço para um sentimento de acolhimento dentro dessa nova família.
A verdade é que ir em festas, festivais ou clubs sozinho(a) é uma experiência desafiadora. Estar só é difícil, principalmente quando as pessoas ao seu redor estão acompanhadas. Se concentrar apenas na música é difícil, com tantas distrações ao seu lado. Aproveitar sozinho é difícil, ainda mais vivendo em uma sociedade em que tudo é compartilhado o tempo todo. Ainda assim, creio que o maior desafio está em furar a bolha da zona de conforto, e isso engloba estar vulnerável para tudo e todos, se virar nos 30 com os problemas que acontecerem e contar somente com a própria companhia para estar (e ser) feliz.
No entanto, nada na vida é gostoso sem um desafio. É ele que faz a batalha ficar mais interessante e a conquista mais saborosa. Furar a bolha do conforto é se abrir para tantas outras experiências que você nunca fez só, mas que agora terá a coragem e vontade de fazer (como viajar sozinho, empreender sozinho e viver sozinho). Uma vez que se entende o valor do próprio abraço, onde se encontra paz, amor e energia nutrindo a si mesmo no círculo da vida, você se torna mais livre. No final das contas, ir em festas sozinho é sobre liberdade - uma que só você consegue se dar.
(Ah, e claro, sem precisar acompanhar amigos no bar ou no banheiro e nem dar voltas intermináveis para achar alguém, poder fazer seu próprio horário e ver o DJ que você quiser, sair de lá só quando o corpo implorar por descanso e não precisar cuidar dos amiguinhos que bebem demais - entre muitos outros benefícios…)
Sobre o autor
Lisa Uhlendorff
Do marketing à produção de eventos e agências de booking. Sou dessas que gosta de fazer um pouco de tudo - com sede de conhecimento, amante dos livros e apaixonada por pessoas e lugares. Morei em Amsterdã e em Barcelona me aventurando no mundo da música eletrônica underground. Hoje, trabalho na M-S Live e na ARCA, em São Paulo.