Rock, Gospel, Funk, MPB... Como a mistura de gêneros redefiniu a música eletrônica e se tornou parte do nosso DNA?
O início da música eletrônica, nas décadas de 1960 e 1970, foi um período de intensa experimentação sonora. Compositores como Karlheinz Stockhausen e John Cage começaram a misturar sons acústicos e eletrônicos, abrindo caminho para novas possibilidades musicais. Bandas como Kraftwerk popularizaram o uso de sintetizadores, combinando elementos de rock, pop e música eletrônica no que conhecemos como synthpop. Nos anos 70, a música disco influenciou DJs a criarem sets que mesclavam ritmos de funk, soul e rock.
Já nos anos 80, o techno e o house emergiram em cidades como Detroit e Chicago, trazendo uma nova estética dançante que integrava esses diversos estilos. A cultura das raves, nos anos 90, consolidou essa diversidade sonora, estabelecendo as bases para os inúmeros subgêneros que compõem o que é hoje a música eletrônica.
Países como Alemanha, França, Estados Unidos, Japão e Reino Unido foram fundamentais na mesclagem de sonoridades para que a música eletrônica tomasse a forma que conhecemos. Bebemos muito do rock, punk, hip hop, jazz, disco e até da música clássica. Sem essas fontes, não nasceriam o synthpop, que trouxe grande popularização da música eletrônica pelo mundo; a música ambient, responsável por tornar sons elétricos em lindas harmonias; ou, muito menos, o house e o techno, grandes pilares da nossa história musical.
As misturas culturais, vindas de um país para o outro, criavam outros movimentos que, ao se fundirem, geravam mais e mais tipos de músicas diferentes. É como se fosse uma cadeia em eterna expansão: uma genética musical mais outra genética musical cria uma nova vertente que, misturada com mais outros elementos, pode gerar ainda mais gêneros. Você já parou para pensar o quão gigante e cheia de subgêneros é a música eletrônica hoje?
Além de sets que são um verdadeiro passeio entre o house, techno, bass music, hard dance etc., hoje temos artistas que são verdadeiros mestres na arte de misturar várias vertentes em uma track só, o que torna, muitas vezes, algo até difícil de categorizar. Eu, particularmente, amo músicas que não conseguimos identificar o gênero ou aquelas que misturam drops de diferentes vertentes na mesma track. Isso mostra o quão variável pode ser a eletrônica e o quanto ainda há espaço para experimentar e explorar. A cada ano, aparece uma vertente nova, um artista fazendo algo diferente e genial, e mais movimentos são criados a partir disso.
Talvez você não saiba, mas "Levels", de Avicii, foi inspirada em uma música que, por si só, já é uma grande mistura de R&B, soul, blues e gospel: a música "Something's Got a Hold on Me", de Etta James. Ou, também, da época de ouro do trance, a atemporal "Adagio for Strings", de Tiësto, que foi inspirada na música clássica de Samuel Barber, dando toda a estrutura para ser um dos maiores sucessos da música eletrônica. Vários de nossos clássicos vieram de outras inspirações. E, dentro da nossa bolha, gera outro efeito que também gosto: quando artistas repaginam um sucesso, transformando-o em algo novo e diferente, como Felguk fez em 2017 com "Sometimes", usando "Levels", ou, recentemente, Flux Pavilion, que usou o clássico trance para fazer "Adagio for Bass".
A música eletrônica está sempre se reciclando e criando novos sons. Na EDM, vemos isso constantemente com artistas como Dimitri Vegas & Like Mike, que trazem de volta a nostalgia com tracks como "House of House", "Friends", "Feel Your Love", "Axel F", entre outras.
“O globalismo e o multiculturalismo contribuíram para a ascensão e queda da individualidade na música eletrônica”
Floyd Handy no Tedx TalksCultura musical no Brasil
Em paralelo, o Brasil também nasceu de uma mistura genética muito grande, o que nos tornou um povo criativo, com uma cultura bastante diversificada. Na música, não poderia ser diferente: temos diversos gêneros extremamente únicos, como a bossa nova, o samba, o axé, o sertanejo, entre outros. E na música eletrônica repetimos o feito; as misturas de deep house, tech house, funk, bass music, psy, etc., criaram uma atmosfera muito única, gerando, inclusive, novos subgêneros como desande, Brazilian bass, chill baile, favela trap, e até mesmo o afro house, que criamos de um jeitinho muito brasileiro. E veja: sem a junção da eletrônica com outros gêneros e elementos nacionais, que estão fora da nossa bolha, não teríamos clássicos como “Sambassim”, do DJ Patife, “Boa Noite”, do Tropkillaz, “Povoada”, do Maz e Antdot, “Pratigi”, de Vegas, entre várias outras de artistas como Cat Dealers e Kvsh.
Cada vez mais influente, a música eletrônica no Brasil vem ganhando força e se tornando referência cultural em nosso país. Nossa cena mainstream conquistou um espaço jamais imaginado, tendo, principalmente, Alok e Vintage Culture como as grandes estrelas do caminho trilhado. Vimos Maz e Antdot tornarem vocais brasileiros sucessos absolutos nas pistas do Brasil e do mundo. Criamos laços com o respeitado Boiler Room, que abraçou o funk, levando artistas como Badsista, Vhoor, entre outros, para tocar lá fora e, recentemente, o evento apresentou ao mundo a nossa cultura nortista, divulgando diversos artistas do tecnobrega em seu projeto “Boiler Room SYSTEM”.
Artistas gringos e o som brasileiro
Assim como bebemos da fonte exterior, os artistas de fora também se inspiram em nosso som. O Brazilian bass se tornou uma febre mundial anos atrás, porém com outro ritmo e outro nome: slap house. Vimos, literalmente, grande parte do mundo produzir sons que foram desenvolvidos na cena brasileira. Tornando-se um dos principais gêneros da música eletrônica em plena pandemia, o slap house deu holofotes para artistas como Meduza, Imanbek, Topic, Goodboys, Regard, Chico Rose e também chamou a atenção de grandes nomes como Tiësto, Afrojack, R3hab, entre outros.
Por outro lado, o funk também está se espalhando mundo afora. Artistas internacionais vêm criando músicas inusitadas, gerando colaborações como Skrillex, TroyBoi e Ty Dolla $ign com Ludmilla e MC Lan, Hugel com MC Bin Laden, Sunnery James & Ryan Marciano com MC Léléto, e Marshmello com vários artistas brasileiros, como Luiza Sonza — vale lembrar que o mascarado tem um álbum inteiro com Tropkillaz, voltado para o funk. Até mesmo no hard techno teve a presença da vertente, com um remix do Shlømo para “Grelinho de Diamante”, lançado na Verknipt.
@renanksilva shlomo destruindo tudo na DGTL com esse remix hard techno de funk
♬ som original - Reny Clubber ⛓️
Mesmo sem colaborações com brasileiros, também impressiona a produção de faixas como “Say Nothing” de Flume, “Favela” de Gladez ou “Crash” de QUIET BISON, lançada pela Ultra Records.
A musicalidade brasileira está ganhando mais espaço em sets ao redor do mundo. Quem não lembra do vídeo do rapper Drake curtindo “Banho de Folhas” no set do Keinemusik ou das polêmicas vezes que o funk apareceu nos sets de artistas de techno? É claro que no Brasil tende a aumentar esse repertório nacional nas apresentações de DJs internacionais, gerando momentos como quando KSHMR tocou “Evidências” com “Iemanjá”, do paulista Gran Fran (hoje conhecido como Flakkë). No Tomorrowland deste ano, ficou bem visível o interesse dos artistas pela nossa música: Timmy Trumpet trouxe diversas músicas brasileiras para o set, como o atual sucesso “Só Fé”, de Grelo, Detonautas com Henrique Camacho, mais de uma música do Legião Urbana, entre outras. No último dia de evento, Steve Aoki revelou novas músicas com brasileiros, inclusive chamando os cantores para o palco.
A mistura musical faz parte da nossa cultura
Sampleando, se inspirando, mixando, “roubando como artistas”... isso tornou a música eletrônica essa grandiosidade que é hoje. Se não misturássemos diferentes culturas, diferentes sons e diferentes técnicas, talvez não tivéssemos essa riqueza musical que tanto amamos. Desde os primeiros passos, com antigas tecnologias, a música eletrônica caminhou por grandes momentos históricos e marcou a cultura de vários movimentos e países.
Que isso fique de mensagem para os artistas também: estejam abertos para outros sons. Cada música que vocês ouvem torna vocês mais experientes para criar algo. Não tenham medo de misturar; saiam da caixa, façam algo novo. O mundo está esperando para ouvir suas ideias malucas que não parecem nada convencionais.
Não podemos esquecer: nascemos da mistura, da diversidade, da luta contra o preconceito, das experiências adquiridas. Nossa música é baseada em muita liberdade, criatividade e amor. A música eletrônica é um espaço onde os gêneros se fundem, criando novas paisagens sonoras que desafiam nossas percepções do que a música pode ser.
- Conteúdo autoral / por Pablo Brandine -
Imagem de capa: Reprodução.
Sobre o autor
Pablo Brandine
Se emocionar, dançar e cantar até ficar rouco. Seu amor por música caminha por todos os gêneros da eletrônica.