Testagem de drogas pré-eventos: um grande potencial para a Redução de Danos
- Por Caio Pamponét -
Quando falamos em Redução de Danos, qual a primeira coisa que vem à sua cabeça?
Apesar de ser um conceito amplo, muitos de nós associamos ela aos stands em festas ou na conscientização pública acerca das drogas, certo?
Mas esse termo vai muito além do que refletir sobre o uso de substâncias psicoativas - é um fenômeno de saúde pública que perpassa por questões políticas, éticas e clínicas.
É um movimento que tem ganhado voz em vários países do mundo, causando um verdadeiro impacto na preservação de vidas humanas e na quebra de paradigmas sociais.
Fato é que o Brasil caminha a passos lentos em relação a outras nações, sejam elas latinas ou europeias, quando o assunto é Redução de Danos (RD).
Enquanto há países adotando abordagens menos punitivas e conservadoras, o que vemos por aqui são coletivos e ONGs que lutam para conscientizar a população e promover uma visão das drogas sem preconceitos e estigmatização.
Mas antes de falarmos do cenário atual da Redução de Danos e vislumbrarmos seu futuro, que tal conhecermos um pouco de sua história?
O surgimento histórico
A Redução de Danos deu os seus primeiros passos na Europa, a partir dos anos 60. Naquela época, alguns projetos começaram a substituir a heroína por metadona no tratamento da dependência a opióides (medicamentos usados para diminuição de dores).
Já nos anos 80, os programas pioneiros do movimento nasceram na Holanda e Inglaterra, oferecendo a troca de seringas para usuários de drogas injetáveis (UDIs) e facilitando o acesso a terapias, emprego e abrigo desses indivíduos. Essa iniciativa resultou num avanço efetivo no controle e prevenção ao HIV, conscientizando e alertando a população sobre o vírus que vinha alastrando o mundo inteiro.
A chegada ao Brasil
Seguindo o exemplo do ocidente, o Brasil se viu na necessidade de aplicar medidas para prevenir a disseminação do HIV entre usuários de drogas injetáveis. Tal preocupação possibilitou que a RD se expandisse no país em meados de 1990, resultando na implantação de cerca de 200 Programas de Redução de Danos (PRDs) e regulamentando a prática em diversos estados.
Na virada de século, com a dificuldade de manter os projetos de pé, o cenário da Redução de Danos no Brasil enfrentou uma crise com a diminuição dos PRDs.
Entretanto, entre 2003 e 2006 ocorreu uma virada de chave nesse contexto.
O Governo Federal assumiu o tema como uma questão de saúde pública, empregando a Redução de Danos como uma política do Ministério da Saúde (MS). Além disso, nesse período surgiu o primeiro coletivo de RD em festas do país, o BalanCe, que se inspirou no progresso de outras nações para implementar conceitos parecidos por aqui.
Desde então, esse movimento vem se espalhando por vários estados, ganhando reconhecimento nacional e se inserindo no âmbito dos direitos humanos e sociais - mas, por vezes, ainda sendo censurado.
Entendendo o seu conceito
É interessante perceber que a Redução de Danos é um fenômeno muito mais profundo do que se pensa. Existem variadas frentes que ela pode assumir, desde a conscientização através de campanhas na Internet a acolhimentos em cenários festivos.
Uma das perspectivas para entendê-la é aceitar que as drogas (sejam elas lícitas ou ilícitas) inevitavelmente estão presentes na humanidade desde o princípio e vão fazer parte dela independente do contexto histórico.
Com isso em mente, devemos compreender que é válido investir nossas energias para minimizar seus impactos, em vez de simplesmente ignorar ou condenar seu uso.
Não é segredo para ninguém que dialogar sobre esse assunto, em muitos círculos sociais, ainda é um grande tabu - e é aí que a RD se movimenta para desconstruir os paradigmas.
Redução de Danos em Festas
Imagine sair para um rolê sabendo que vai encontrar um ambiente rodeado de profissionais para conversar abertamente sobre o uso de drogas e acolher as pessoas em caso de adversidades?
Para nossa sorte, estamos numa época em que muitas Raves pelo Brasil instalam stands de Redução de Danos em seus eventos, justamente para criar esses vínculos e promover uma conexão ética e respeitosa com os consumidores de substâncias psicoativas.
No cenário mais popular, festas como Só Track Boa e Time Warp contaram recentemente com tendas de RD, oferecendo ajuda para o corpo e a mente dos festeiros.
Nesses locais, os frequentadores podem encontrar um local seguro e confortável não só para se conscientizarem das drogas que utilizam como também receber apoio e acolhimento necessário.
Com esse tipo de tratamento, os usuários refletem sobre as formas de uso, quantidades, efeitos, além de muitos outros aspectos, diminuindo consideravelmente situações de risco à saúde das pessoas - a educação é a prevenção!
A contribuição de equipes multiprofissionais
Se engana quem pensa que os projetos de Redução de Danos não carregam uma bagagem profissional para lidar com o tema.
Um bom exemplo disso é o Centro de Convivência É de Lei, uma das primeiras organizações do país a atuar na promoção da redução de riscos e danos relacionados ao uso de drogas.
Fundado em 1998, o serviço é composto por uma equipe multiprofissional com diferentes formações e experiências, como Psicologia, Antropologia, Ciências Sociais, Farmácia, Bioquímica, Enfermagem e Biologia. E para além disso, os membros do É De Lei são frequentadores da cena eletrônica que cultivam valores essenciais nesse contexto: Bem-estar, Autonomia, Antiproibicionismo, Liberdade, Prevenção, Respeito e Responsabilidade, para citar alguns.
Se não rola apoio dos governantes, a cena apoia a própria cena. Uma união com potencial de gerar grandes frutos.
Testagem de drogas e seu contexto histórico
A checagem de drogas é uma das principais frentes assumidas pela Redução de Danos e carrega uma rica história que se alonga por mais de seis décadas.
A primeira onda surgiu nos Estados Unidos e na Holanda ao fim dos anos 60 e início dos anos 70, quando eram realizadas análises de “drogas de rua”. Em seguida, nos anos 80, iniciativas vieram para verificar drogas associadas ao ecstasy e outras que ferviam nas pistas de dança pela Europa. A terceira etapa desse processo é a mais recente – e também a mais próspera: testes de drogas são introduzidos em festivais por todo o Reino Unido, Austrália, América do Norte e do Sul.
Mesmo com o progresso contínuo desse movimento, a testagem de drogas ainda é vista com um olhar estigmatizado e estereotipizado em muitos países, seja por contextos políticos, jurídicos ou até desinformação. Na maioria dos casos, como já vimos neste artigo, os testes são produzidos principalmente por ONGs e coletivos sem fins lucrativos.
Testes colorimétricos para identificação de substâncias
Uma das inovações mais interessantes para a testagem de drogas no mercado brasileiro é a produção de reagentes colorimétricos que analisam as substâncias de forma rápida, segura, confiável e econômica.
Os pioneiros deste produto aqui no Brasil foi o ‘Reaja’, empresa fundada em 2015 pelos amigos (e químicos) James Kava e Fabiano Soares.
Mas o que são esses testes colorimétricos? Na Química, eles são utilizados para a identificação de substâncias em análises há mais de 200 anos e são essenciais para reconhecer vários compostos de maneira preliminar.
"Eu já sabia que existiam testes laboratoriais para identificação de alcalóides e outras substâncias. Então por que não desenvolver algo pro público em geral? Para anfetaminas, fenil, etiominas?"
Relembrou James Kava, sócio fundador do ReajaEsses testes são, basicamente, várias formulações químicas que avaliam qualitativamente a classe de substâncias presentes em alguma droga. Além de serem oferecidos em ambientes de festa, o produto também é vendido pela Internet legalmente e funciona de forma bem simples e intuitiva.
Em meados de 2016, Kava e sua equipe deram o pontapé inicial na iniciativa e começaram a fornecer os testes colorimétricos para coletivos de redução de danos, como o ResPire, do É de Lei.
Desde 2019, o Reaja realiza parcerias com coletivos independentes, cedendo kits completos de testes, com aparatos e equipamentos, por um custo bem baixo (30% do valor). A união foi tão primordial que à medida em que os projetos de RD crescem, a venda de reagentes colorimétricos segue no mesmo ritmo, tornando-se cada vez mais acessíveis à população.
“O teste é uma ferramenta, uma materialização da redução de danos. A gente disponibiliza essa alternativa para que os coletivos possam ter ferramentas em mãos para testar. É uma parceria que gera muito engajamento"
Enaltece KavaO progresso em países estrangeiros
A testagem de drogas em muitos países ao redor do mundo já é entendida como uma estratégia de saúde pública e ressaltada como uma política social.
Na Alemanha, o Departamento de Saúde do Senado criou um esquema legalizado de testes de drogas. O ‘Drug Checking’ permite que as pessoas deixem suas substâncias para testarem as purezas e composições gratuitamente, gerando o resultado após três dias.
Os britânicos também estão avançados nesse sentido. Em grandes festivais como Glastonbury e Reading, o público, de forma anônima, pode pedir testes para saber se as drogas estão adulteradas e receber laudos em poucas horas.
Em Portugal, país que descriminalizou as drogas em 2001, festivais como o Primavera Sound já contam com containers de Redução de Danos que oferecem testes gratuitos para o público. Além disso, cidades como Lisboa contam com uma van que roda em vários lugares específicos realizando testagens colorimétricas de forma gratuita para a população.
Já no caso da Irlanda, o próprio Serviço de Saúde Público do país lançou um programa que implementa a testagem de drogas durante os maiores festivais, como o Electric Picnic e o Life Festival. Com essa iniciativa, as autoridades clínicas irlandesas puderam ter acesso aos indivíduos consumidores de forma mais segura, respeitosa e eficiente. E para que isso fosse possível, eles fizeram uma parceria com a polícia local para garantir que as áreas de teste estivessem livres de punições, ou seja, as pessoas que entregassem as drogas não seriam julgadas ou presas.
Até mesmo nossos vizinhos latino americanos da Colômbia e Uruguai puderam ter a experiência da testagem em contextos de festas, representando um grande passo para a Redução de Danos na América do Sul.
A testagem aumenta o uso de drogas?
Esse é um questionamento comum quando se trata da implementação de testes em festas.
Em uma recente pesquisa divulgada em 2022 pela ONG The Loop em parceria com a Universidade de Liverpool, na Inglaterra, foi revelado que a testagem de drogas em festivais não resultou num aumento do uso de drogas, mas tornaram esses ambientes mais seguros. Contando com a participação de 250 mil pessoas, o estudo descobriu que cerca de 60% do público descartou as substâncias após desconfiarem de seu conteúdo.
Apesar de ter um potencial enorme de prevenir overdoses ou até mortes, alguns argumentam que a implementação de locais de testagens impulsionariam o consumo de drogas.
Entretanto, ainda segundo a pesquisa, apenas 1% dos entrevistados afirmaram que usariam mais drogas em razão da presença de testagens.
"Quando esse serviço acontece, fica visível que as emergências devido ao uso abusivo de substâncias diminuem drasticamente. Muitas demandas podem ser antecipadas ali, testando uma substância, sabendo se é ou não é ela, para não correr o risco de utilizar e ter o problema de ser atendido depois"
Expõe KavaÉ evidente que essa é uma postura muito individual e que não se pode prever efetivamente seu efeito geral. Mas uma coisa é certa: as pessoas estão cada vez mais conscientes e informadas acerca da importância do autocuidado e da Redução de Danos, o que já é um ponto muito benéfico.
"Os testes colorimétricos oferecidos são essenciais para que um festival aconteça de uma maneira harmônica e para que a gente saiba ali que os indivíduos são autônomos, conscientes, para tomar suas próprias decisões e fazer o melhor uso delas. A redução de danos humaniza essa nossa educação sobre drogas, que é tão escassa hoje"
Enfatiza o sócio fundador do ReajaOs próximos passos da testagem
Apesar de conhecermos os testes de drogas em contextos de festa, novas estratégias já estão sendo pensadas para tornar a redução de danos ainda mais concreta na sociedade. Uma dessas vertentes é a testagem em saliva, que avalia quais substâncias estão presentes no organismo do indíviduo.
Em alguns países que investem tecnologicamente nesse movimento, já é possível encontrar testes utilizando equipamentos que identificam substâncias sem mesmo degradá-las, podendo consumi-las logo depois de realizar a análise.
“Hoje, a redução de danos está escondida e minimizada no Brasil. Agora, com a mudança de governo, vamos conseguir ter progressos em relação a essa política pública ser cada vez mais implementada em secretarias públicas municipais, estaduais e de saúde. Que seja entendida e dada a importância que merece para alcançar diversos objetivos”
Vislumbra James KavaO que enxergamos
Está mais do que comprovado que combater criminalmente as drogas não diminui em nada o seu uso de forma geral. Priorizar questões políticas e jurídicas em detrimento da saúde pública é um conceito que nunca traz desfechos agradáveis, e torna a relação ancestral do ser humano com as drogas ainda mais problemática.
A testagem de drogas, assim como a Redução de Danos em geral, é a metodologia de tratamento mais indicada e orientada a ser feita atualmente, com um potencial enorme de preservar incontáveis vidas e não só conscientizar, como também educar a população sobre o consumo de substâncias.
Porém, o caminho ainda é longo para que ela seja totalmente implementada no Brasil. Esperamos que o futuro desse fenômeno seja realmente promissor na sociedade em geral.
Imagem de capa: Reprodução.
Sobre o autor
Caio Pamponét
Graduando em jornalismo pela UFBA e Redator da Play BPM. Um apaixonado por música desde a infância que cultiva o sonho de viajar pelo mundo fazendo o que ama e conhecendo novas culturas. Com um desejo inerente de fomentar a cena eletrônica de sua terra - Salvador, BA, Caio Pamponét respira os mais diversos BPM's e faz da música o seu combustível diário.