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A cena de música eletrônica ainda enfrenta uma disparidade de gênero enorme, seja no estúdio ou nos palcos. A representação feminina no mercado segue desequilibrada em relação à figura masculina.
Para se ter ideia, numa pesquisa de 2019, estimou-se que menos de 10% dos DJs e apenas 5% dos produtores de música eletrônica eram mulheres. No ranking do Top 100 da DJ Mag, que elenca os artistas mais populares do mundo, cerca de 6% é porcentagem anual da presença feminina na lista. Além disso, em 2022, somente 28% dos artistas de festivais eletrônicos eram mulheres.
Apesar de tudo isso, a perpetuação de alguns estigmas em torno de artistas femininas vem sendo quebrada nos últimos anos, conquistando espaços que antes estavam longe de ser antingidos por elas, seja por por pressão cultural, desvalorização ou preconceito.
Nessa data do Dia Internacional da Mulher, celebrado em 8 de março, nós trazemos dez figuras que fizeram contribuições sem precedentes para a história da música eletrônica, revolucionando as estruturas tradicionais da composição musical, e abrindo portas para inúmeros outros artistas e produtores. O pioneirismo feminino dentro da nossa cena é real - e todos deviam conhecer um pouco mais sobre. Então se liga na lista:
Annie Nightingale
Radialista da BBC Radio 1 desde 1970, Annie é considerada a primeira mulher a apresentar o programa e detém o recorde mundial da "Carreira mais longa como apresentadora de rádio".
Pioneira na seleção musical para programas, ela mudou a cara da televisão e rádio do Reino Unido. Inicialmente tocando rock na rádio e apresentando bandas de punk e new wave no 'TV The Old Grey Whistle Test' no fim dos anos 70, Annie abraçou a música eletrônica underground na década de 90, tocando techno, drum & bass e big beat no programa 'The Chill Out Zone' e, posteriormente, rodando o mundo inteiro como DJ.
Annie levou a Dance Music para o ouvido popular, se tornou campeã em torneio de discotecagem de breakbeat e lançou três compilações de mixagens, além de publicar três livros de memórias pessoais.
Johanna Magdalena Beyer
A alemã Johanna Beyer foi a primeira compositora da história a criar trabalhos para instrumentos eletrônicos, lá na década de 1930.
Em 1938, ela compôs "Music of the Spheres", que é considerada a primeira partitura de uma mulher escrita inteiramente para instrumentos eletrônicos, como sintetizadores.
Mesmo sem ter alcançado a notoriedade em vida, ela foi amplamente reconhecida por seu talento no piano e por sua musicalidade refinada. Além da sua contribuição na música eletrônica, ela foi uma influente figura na composição de vários trabalhos solo para instrumentos clássicos, percussões e peças orquestrais.
Clara Rockmore
Essa é uma das figuras com a carreira mais antiga dentre as que estão nesta lista. Uma prodígio do violino na infância, Clara conheceu o inventor russo Léon Theremin, que é nada menos do que o criador do Theremin, um dos instrumentos eletrônicos mais fantásticos e pioneiros da história, tocado sem nenhum contato físico com o equipamento.
Ela se tornou a "aprendiz" de Léon, ajudando-o a aperfeiçoar o instrumento, além de realizar apresentações em toda a Europa que contribuíram para que a sociedade levasse a sério a música eletrônica experimental. Clara legitimou o Theremin como um "instrumento de verdade" e estebeleceu a música experimental como uma arte respeitada e reverenciada para o público crítico da década de 30.
Seu primeiro lançamento oficialmente só veio em 1977, a 'The Art of the Theremin', uma importante gravação que coroou suas décadas de trabalho e dedicação à música eletrônica e engenharia de som.
Pauline Oliveros
Multi-instrumentista, professora, escritora e compositora de música eletrônica. A americana Pauline desempenhou um importante papel na década de 60, desenvolvendo uma configuração exclusiva de processadores de sinal digital para seus shows ao vivo, além de ser pioneira na criação de novas teorias musicais, como a "escuta profunda" (expansão da percepção sobre os sons que compõem o espaço/tempo) e a "consciência sonora" (capacidade de focar conscientemente nos sons musicais e do ambiente).
Ela também foi fundadora e primeira diretora do San Francisco Tape Music Center, uma organização independente que se tornou uma das principais do mercado de música eletrônica na Costa Oeste dos Estados Unidos, já que também funcionava como estúdio e local de apresentações.
Delia Derbyshire
A inglesa Delia Derbyshire foi uma musicista e compositora de música eletrônica mais conhecida por seu trabalho na década de 60 na BBC Radiophonic Workshop, uma unidade de efeitos sonoros da BBC, responsável pela criação das músicas de abertura de rádio e TV da época.
Seu trabalho mais lendário foi a criação da música tema do seriado 'Doctor Who', que estreou em 1963 e é considerado um dos mais icônicos programas da história da televisão.
Sem a ajuda de nenhum outro músico, Delia criou esta que seria uma das primeiras trilhas sonoras criadas somente com elementos eletrônicos. A música permaneceu como tema oficial da série durante 17 temporadas, de 1963 até 1980, e Delia foi (infelizmente) creditada apenas em 2013 nas telas.
Além de Doctor Who, ela compôs músicas para vários outros programas, documentários, filmes e séries de rádio e TV. Seu repertório musical abriu caminho para que trabalhasse com os primeiros pesquisadores sonoros da história da música, como os músicos de Pink Floyd e The Beatles, além de Brian Jones (fundador do The Rolling Stones).
Sua contribuição na cena eletrônica influenciou diretamente artistas como The Chemical Brothers, Aphex Twin e Orbital.
Wendy Carlos
Wendy exerceu papeis fundamentais no desenvolvimento da música eletrônica e na representação feminina no mercado musical.
Ela se tornou uma das primeiras figuras públicas a se assumir transexual, em 1979. Além de toda essa quebra de paradigmas sociais, Wendy é formada em composição musical pela Columbia University e se uniu com seu amigo de infância Robert Moog para criar o lendário primeiro sintetizador comercial da história - o Moog.
Seu álbum de maior sucesso, o 'Switched-On Bach', de 1968, é tido como a primeira produção a introduzir e legitimizar os sintetizadores ao reino da música Pop (comercial) dos Estados Unidos, conquistando 3 Grammys e revolucionando a indústria musical da época. O disco é considerado por muitos como o primeiro sucesso musical 100% eletrônico de toda a história.
Ela apresentou a música eletrônica para os músicos de rock e punk dos anos 70 e 80, contribuindo para pavimentar estilos como rock progressivo e new-wave. Como se não bastasse, Wendy ainda foi convidada a compor trilhas sonoras de vários filmes atemporais, como Laranja Mecânica (1971), O Iluminado (1980) e Tron (1982).
Designer de som, compositora, artista, produtora e ativista, Wendy revolucionou a presença das mulheres na música eletrônica.
Pauline Anna Strom
Cega desde seu nascimento, 1945, Pauline sempre teve uma experiência única com a música, traduzindo suas sensações internas em arte. Em 1970, ela começou a compor músicas com sintetizadores, lançando 9 álbuns durante a carreira que exploram as sonoridades futuristas do Ambient e da música eletrônica experimental.
Compositora autodidata e intérprete de sintetizadores, Pauline também popularizou o uso de instrumentos eletrônicos na criação musical, deixando um repertório brilhante ao falecer em 2020.
Suzanne Ciani
A compositora e designer de som americana Suzanne Ciani foi uma das primeiras artistas femininas a levar a música eletrônica para os palcos.
Estudando composição da Universidade da Califórnia, ao fim dos anos 60, ela explorou uma grande variedade de instrumentos eletrônicos, se tornando uma verdadeira maestra dos sintetizadores.
Ao longo de seus estudos, Suzanne conheceu o pioneiro Don Buchla, inventor do sintetizador modular analógico Buchla (concorrente do Moog) - este que se tornaria o instrumento fundamental em sua carreira artística.
Em 1978, ela fundou a Ciani/Musica, uma empresa que produzia temas e jingles para anúncios publicitários. Foi assim que Suzanne compôs para marcas gigantes como Merrill Lynch, AT&T e Coca Cola (emulando o som da abertura de uma garrafa apenas usando instrumentos eletrônicos).
Até hoje, ela lançou 16 álbuns solo e foi indicada cinco vezes ao Grammy de 'Melhor Álbum New Age'. Além de tudo, Suzanne é também uma notável ativista dos diretos da mulheres, sempre ressaltando que o mundo da música eletrônica é um grande "playground sonoro" onde as mulheres também podem viver suas aventuras musicais.
Daphne Oram
Considerada a "madrinha da música eletrônica britânica", Daphne Oram começou sua carreira como a primeira engenheira de som e diretora das Oficinas Radiofônicas da BBC, em 1958, época em que a música eletrônica ainda dava seus passos iniciais.
Antes mesmo dos sintetizadores chegarem ao mercado, Daphne se apaixonou pelo mundo da música eletrônica, o que incentivou ela a criar uma forma de síntese sonora complexa chamada "Oramics" - um método de composição musical que funciona através de um alfabeto de símbolos no papel que são sintetizados por uma máquina e transformados em sons numa fita eletrônica. Os sons eram minimalistas, abstratos, e precursores do que viria a ser o gênero 'Ambient'.
Com isso, Daphne é tida como a primeira mulher a projetar e construir um instrumento musical eletrônico, além de ser uma das primeiras compositoras britânicas a produzir música eletrônica e a primeira figura feminina a dirigir um estúdio focado em música eletrônica.
Bebe Barron
Bebe Barron e seu marido Louis são reconhecidos como as primeiras pessoas a criarem uma trilha sonora 100% eletrônica para um filme comercial, muito antes dos efeitos sonoros que surgiram no cinema.
Forbidden Planet, do ano de 1956, é resultado de gravadoras de fita de toca-fitas em loop, modulações em anel, osciladores eletrônicos, reverberadores e vários instrumentos eletroacústicos feitos à mão.
Ao longo das décadas de 1950 e 60, ela continuou compondo para o cinema experimental e filmes de arte e é considerada uma das figuras mais influentes na história das trilhas sonoras de filmes.
Elencar 10 nomes de mulheres numa história tão rica como a da música eletrônica é difícil. Houveram inúmeras mentes inovadoras e revolucionárias nessa trajetória - talvez algumas figuras que nem são reconhecidas por isso.
Não podemos mudar os preconceitos que se estendem há décadas, mas podemos ensinar e mudar a maneira como entendemos as genealogias musicais. Num mercado ainda de hegemonia masculina, exaltar o papel pioneiro dessas e de outras mulheres é um importante passo para reeducar a nossa cena.
Então, fica o questionamento: não temos artistas talentosas suficientes ou não damos o devido reconhecimento a elas?
Imagem de capa: Reprodução.
Sobre o autor
Caio Pamponét
Graduando em jornalismo pela UFBA e Redator da Play BPM. Um apaixonado por música desde a infância que cultiva o sonho de viajar pelo mundo fazendo o que ama e conhecendo novas culturas. Com um desejo inerente de fomentar a cena eletrônica de sua terra - Salvador, BA, Caio Pamponét respira os mais diversos BPM's e faz da música o seu combustível diário.