O maior vírus da história da humanidade nos pegou em cheio e eu não fui nenhum lírio do campo não afetado pelas consequências dele, muito pelo contrário, a pandemia me atingiu como um raio atinge o solo e eu senti, no mais profundo do meu ser, as consequências que tudo isso trouxe. As palavras do ano, “ansiedade” e “depressão”, foram pintadas na minha tela e eu tenho certeza que eu não estaria onde eu estou se não fosse pela música e por tudo que ela me trouxe, me traz e continuará me trazendo na vida.
Como ficar longe da família? Longe dos amigos? Longe daquilo tudo que faz meu coração bater mais forte? Tudo aquilo que me move? Tudo aquilo que sempre deu sentido à minha vida?
O ano passado não foi nada do que eu imaginava ao sair de Brasília e vir para São Paulo. Depois de dois episódios de assédio no trabalho, moral e sexual, respectivamente, eu me via em uma situação completamente desesperançosa. A dor mental é tão grande que às vezes é preciso sentir algo físico para compensar, para trazer para a realidade, para concretizar o sentimento. Foi então que, em momentos de muita tristeza, medo, insegurança e frustração, eu me arranhava, no intuito de tirar aquela dor que parecia me sufocar. Dói, dói muito não conseguir respirar, sentir que o coração vai pular da boca e achar que nada vai dar certo ou que você não é boa o suficiente.
E é aí que a música, que sempre esteve presente na minha vida, entra.
Sou fruto do encontro das melodias de um violino com a harmonia de um violão. Meus pais, Jaime e Liliana, são músicos e, desde criança, os sons percorriam todos os espaços por onde eu estivesse. Por 24 horas no dia e 07 dias na semana, a música estava presente de alguma forma no meu dia-a-dia, nem que fosse pelas partituras dos meus pais espalhadas pela casa. Talvez eu nunca tenha compartilhado isso com ninguém, mas uma das memórias mais vivas da minha infância (infância mesmo) é a de quando eu me deitava em cima de um conjunto de cadeiras de boteco enfileiradas. Meus pais eram professores de violino e violão, mas sabemos que viver da arte não é nenhum luxo no Brasil e, então, eles se apresentavam também em bares, casamentos, restaurantes e outras cerimônias para complementar a renda e garantir uma vida com zero defeitos para mim e para os meus irmãos.
Presenciei desde sempre a luta dos artistas e hoje em dia tenho muito orgulho e me sinto muito honrada em dizer que eu fui criada durante toda a minha vida com o dinheiro da arte. Aprendi desde pequena a ter zelo, respeito e muito amor pela música e por todas as outras demonstrações artísticas que existem no mundo.
Considerando a minha criação, frequentemente eu questionava porque não havia desenvolvido a minha veia musical. Logo eu, que tinha a música literalmente dormindo ao meu lado, era a “ovelha negra da família”, nesse sentido. Sendo filha de músicos, a pergunta SEMPRE vem: “E você, toca o quê?” – e eu tenho que dar aquela resposta bem clichê: “Campainha”. Por isso sempre houve uma pulguinha atrás da orelha, já que a vida, quando acompanhada de uma senhora trilha sonora, é muito melhor.
Até que eu percebi que você não precisa ser músico para ter a música como protagonista na sua vida. Descobri que a minha missão musical é a de ser completamente salva e transformada todos os dias pela música, sim, pela música eletrônica.
Em 2016 eu fui para o meu primeiro festival de música eletrônica da vida, o Ultra Rio. Eu lembro como se fosse hoje de cada sensação que passou pelo meu corpo naqueles dois dias. Ainda consigo sentir o arrepio percorrendo pelos meus braços abertos no encerramento da sexta-feira. Estava tocando “In the Name of Love” do Martin Garrix e era exatamente isso que eu sentia: amor. Amor de uma forma que eu nunca havia sentido antes por algo que eu não pudesse tocar. Eu consigo acessar na minha memória os rostos de cada pessoa que eu conheci. Em um festival, você esbarra em muita gente, e a cada esbarrão, você faz um novo amigo. Para quem achava que um esbarrão era motivo de briga, na música eletrônica não. É motivo de um sorriso, um abraço, um “tá tudo bem?” ou até mesmo um “quer uma água?”.
E foi depois desse evento que eu decidi que era isso que eu queria. Era sobre isso. Meu maior sonho passou a ser conhecer o mundo por meio dos maiores festivais de música eletrônica. Foi então que eu decidi que iria juntar dinheiro para conhecer o Tomorrowland na Bélgica, o maior festival do mundo. Vendendo muito ovo de páscoa ao longo de três anos pelos corredores da faculdade, eu consegui juntar o dinheiro e assim que me formei, embarquei para o que seria a maior e melhor experiência vivida por mim até então.
Por conta do festival, conheci aqueles que seriam os meus futuros melhores amigos e tudo se transformou a partir daí. Mesmo antes da viagem, pude me relacionar com pessoas incríveis que compartilhavam o mesmo sonho que eu. E foi entrando no grupo “Dreamers of Tomorrow” que essa conquista se tornava mais real a cada dia. Ir para o Tomorrowland é ir sabendo que você vai voltar com um pedacinho de você em cada canto do mundo. Tem a parte que fica nos Estados Unidos, a galera que mora na Europa, tem até gente na África e na Arábia. Mas a certeza permanece a mesma, estamos e estaremos sempre conectados pela música. Nós temos esse denominador em comum. E isso basta.
Basta para virarmos uma família. Basta para termos uns aos outros. Basta para conquistarmos o que quisermos. Apenas basta.
Assim, o meu objetivo estava cada vez mais latente: conhecer outras pessoas e outros lugares tão apaixonantes como os que eu já conhecia. Pós Tomorrowland, já morando em São Paulo, vivi um segundo semestre de 2019 e início de trimestre de 2020 incríveis, musicalmente falando. Conheci o clube Laroc, lugar que ganhou meu coração assim que eu pisei naquele estacionamento e o vi, me aproximei ainda mais da família que tinha acabado de ficar maior, e comecei a planejar o retorno àquele lugar mágico na Bélgica, que aconteceria em 2020.
No entanto, sabemos que não foi bem assim que as coisas aconteceram. O Covid chegou chegando, nos transformando e adiando nossos sonhos. Nos fez mergulhar dentro de nós. Nos fez ouvir barulhos audíveis somente no silêncio do autoconhecimento. Eu me vi longe da família, longe dos amigos, longe de tudo que eu amava, desempregada e sem esperança. Como lidar com o turbilhão de emoções que circulava pelo meu sangue? Como lidar com todos os processos pandêmicos que me tiravam o sono?
E quando eu menos esperava, a música chegou, me reconectando comigo mesma, me fazendo entrar em contato com lugares da minha alma que estavam adormecidos.
A minha família por parte de pai é 90% formada por músicos, de todos os tipos. São flautistas, baixistas, cantores, tecladistas, violonistas, e eu sempre estive imersa nesse meio. Mesmo na minha família materna, que é tradicionalmente formada por médicos, dentistas e juristas, também nunca faltaram momentos musicais. Muito pelo contrário, em cada encontro – e que saudade desses encontros – bastava alguém dedilhar as cordas do violão, que a cantoria era certa. “Andança”, de Beth Carvalho, é uma das primeiras músicas que fez com que eu me apaixonasse tanto por essa forma de arte. Era ao som do violão do “Tio Joca” que cantávamos em uníssono: “Só o amor me ensina onde vou chegar (Por onde for, quero ser seu par)”.
“Cecília”, música que meu pai compôs para mim, é outra que eu posso citar como motor para a minha paixão musical. Ouvir “Cecília” é ouvir a minha energia. É tornar real a minha essência. Não à toa, é a música mais agitada de todos os 05 filhos do meu pai (será que papacito me conhece ou não?).
Entretanto, eu não tenho só a minha família musical de sangue. O ano de 2020 só confirmou que eu tenho também a minha família musical escolhida e foram elas duas, acompanhadas de sonzeiras absurdas, que me fizeram ressurgir e brilhar novamente. A minha essência estava de volta. “You can never take my soul”, trecho da música "Northern Soul", do meu trio de DJs preferidos, Above & Beyond, retrata muito bem esse sentimento. Mesmo em meio ao caos, a minha essência e a minha alma permaneceram as mesmas. Era só uma questão de me reconectar.
E essa reconexão foi feita. Graças à música, aos amigos da música, à família da música. Sabendo que eu não estava nada bem, meu amigo, Daniel, que eu conheci por causa da dance music, me deu um presente que eu não sei quando vou ser capaz de retribuir, porque é sobre o gesto. Para o Tomorrowland Digital de 2020, eu estava desempregada, sem dinheiro e sem ver as pessoas há mais de cinco meses, e foi esse amigo que me pagou uma passagem para a cidade dele, para que pudéssemos ver juntos a transmissão do festival, dentro do que podíamos fazer para nos proteger mesmo com o vírus circulando pelos ares.
Foi a partir daí, e do acompanhamento psicológico e médico, que eu voltei a entrar em contato com o meu brilho. Logo eu, uma comunicadora como meu pai sempre disse, uma pessoa pra cima, alegre, a “Abacaxissa”, mãe do Smokey (o foguete que te leva pra Nárnia), me vi sem brilho, sem energia, sem vitalidade, sem enxergar mais sentido em muitas coisas da vida. Eu sempre tive esse jeitinho de me conectar com as pessoas, acho que é uma das coisas que eu faço de melhor, e eu não estava conseguindo acessar esse meu lado.
Até que eu resolvi buscar ajuda. Não foi da noite para o dia. Durante muito tempo eu relutei em buscar assistência médica, afinal de contas, como aceitar que eu, sempre tão divertida e feliz, precisaria de remédios para me reerguer? É preciso muita coragem para tomar essa decisão, mas eu fui e continuo sendo corajosa.
Os transtornos mentais ainda estão imbuídos de muito tabus e preconceitos. Contudo, reconhecer a necessidade de algo externo para nos amparar não nos torna fracos, mas sim humanos. É incrível como nos conectamos não só nas conquistas, mas nas adversidades também. Há muitas pessoas passando pelo que eu estou passando e se você, que está lendo esse texto, estiver passando por um processo parecido, saiba: você não está sozinho(a).
Não importa o quão angustiado você esteja, lembre-se de que é uma questão de “estar”, não de “ser”. Você é capaz de encontrar motivos para se reconstruir. Por um momento eu também achei que não havia saída, mas buscar ajuda me fez ter a certeza de que viver vale a pena. Depois de tentativas frustradas, muito choro, desemprego e tudo aquilo que me doía a alma, eu fui capaz de me reconstruir e pode ter certeza que eu não sou a única com essa capacidade.
Eu, que vim para São Paulo para me inserir no mercado de trabalho, e já havia passado por duas situações frustrantes profissionalmente falando (lembra do assédio?), segui acreditando que meu lugar era a grande metrópole. O que eu havia me proposto a conquistar aqui, eu ainda não havia conquistado e, por isso, eu não podia desistir. Posso dizer que sempre tive uma vida privilegiada, com muito mais do que eu precisava e tive a oportunidade de ter uma família que me incentivou a continuar na cidade correndo atrás dos meus sonhos. Todos se mobilizaram em prol da minha história. Meus pais, irmãos, tios e até os meus avós, que são de outros tempos, mas sempre fizeram questão de entender o que é esse “tunts tunts” que eu tanto amo.
Dessa forma eu segui, tentando encontrar o meu caminho na “cidade grande”. Atualiza o LinkedIn. Manda currículo. Busca contatos. Pede indicação. Faz entrevista. Apresenta case. Participa de dinâmica de grupo. Mas nada, nada, parecia se encaixar.
Até que aconteceu a despedida do Gê e da Dani. Eles são meus afilhados de casamento que adivinha, eu conheci por causa da música, e iam se mudar para a Holanda em busca de seus próprios sonhos. No final de semana da despedida, onde também tomamos todos os cuidados possíveis, eu tive a oportunidade de compartilhar a vibe com o Flosi, que eu já conhecia por causa do Tomorrwland (pasme), mas com quem ainda não tinha me conectado. Foi um momento tão marcante que, no domingo, último dia, ele me falou:
“Preciso te falar duas coisas: primeira: ‘Obrigado por compartilhar essa vibe comigo’; e segunda: ‘Eu preciso trabalhar com você’.
E foi assim que na semana seguinte eu, desempregada há quase um ano, estava no escritório da Play BPM na Rua Rodésia. Foi quando eu (re)conheci o Rodolfo. Sim, já havia curtido momentos incríveis com ele e com seu namorado no Tomorrowland na Bélgica. Conheci também mais uma série de pessoas tão apaixonadas por esse mundo quanto eu e que também apostaram no sonho de trabalhar com o que amam. O universo realmente não dá ponto sem nó. Ele se encarrega de juntar pessoas que possuem a mesma sintonia. Ele insiste em esfregar na nossa cara que nada acontece por acaso.
E foi então que eu, apaixonada por música que sempre fui desde criança, estava trabalhando em uma das revistas de música eletrônica mais relevantes do país. Vocês tem noção do que é trabalhar com seus amigos ouvindo uma sonzeira em pleno horário comercial? Entendendo cada vez mais sobre esse mercado? Desvendando a história desse gênero musical? Em contato direto com o mundo que ganhou meu coração lá em 2016? Pois é, é uma bênção e eu sou muito muito muito grata por isso.
Hoje, eu posso dizer que a música me salvou e me salva todos os dias. Eu entro em estado meditativo ao ouvir um set do Mees Salomé, eu me emociono ao som da terapia de grupo, literalmente, que é um set do Above, eu sinto saudades até dos momentos que eu nem vivi. Eu consigo fechar os olhos e me teletransportar para os momentos mais felizes da minha vida, eu consigo ouvir as cordas do violão do meu pai e as melodias do violino da minha mãe. Eu me sinto presente. Eu tenho colo. Eu me sinto protegida, acolhida, abraçada. Eu sinto gratidão.
A música sempre me tocou e sempre vai tocar. Eu me emociono, choro, pulo, grito e danço. “Quem não escuta a melodia, acha maluco quem dança”, né? Pois eu digo bem, nunca parem de dançar, porque enquanto a gente dançar, tudo vai se resolver. Eu faço questão de transmitir esse amor para todos ao meu lado, os meus amigos que o digam. Os que – ainda – não são apaixonados pela música eletrônica, os que não viveram, ainda vão viver porque eu faço questão de mostrar. É por isso que eu faço o que eu faço: para que todo mundo experimente esse amor, esse sentimento único que o gênero proporciona. Família escolhida, vocês sabem quem são e entendam: vocês são tudo para mim.
As memórias que eu crio, de momentos inesquecíveis, me fazem ter a certeza de que eu estou exatamente onde eu deveria estar, fazendo exatamente o que eu deveria estar fazendo e eu não mudaria nada do que aconteceu no meu percurso porque tudo me trouxe para o hoje, para o agora.
Pai, você acertou. Eu estou no “mundo”, morando longe de casa, trabalhando com música eletrônica e usando o que eu tenho de melhor: a minha comunicação e a minha escrita. Mãe, obrigada por ser essa pessoa que acredita em mim de olhos fechados e me apoia em todas as minhas aventuras. Família de sangue, eu não tenho palavras para descrever o quão grata eu sou por todo apoio.
E é por isso que eles, como sempre, acertaram ao dizer: “Live Today, Love Tomorrow, Unite Forever”.
É essa a minha missão. É esse o meu legado. Meu coração é música.
Sobre o autor
Cissa Gayoso
Sendo fruto do encontro de uma violinista com um violonista, a música me guia desde sempre e nela encontrei a família que escolhi para chamar de minha. A partir de 2021, transformei minha paixão em profissão e, desde então, vivo imersa nas oportunidades e vivências que este universo surpreendente da arte me entrega a cada momento! De social media à editora-chefe da Play BPM, as várias facetas do meu ser estão em constante mudança, mas com algumas essências imutáveis: a minha alma que ama sorrir, a paixão por música, pela arte da comunicação, e as conexões da vida que fazem tudo valer a pena! 🚀🌈🍍